Artigo

Cada vez que Damares se refere a meninas como princesas, ela reforça a cultura do estupro

As cortinas de fumaça do governo podem matar e, com certeza, as cortinas de fumaça, quando não são disputadas, fazem perder eleições

Cada vez que a ministra ataca as possibilidades de se introduzir a educação sexual nas escolas, estimula a manutenção desses índices de gravidez indesejada na adolescência. (Foto: Nações Unidas / Pierre Albouy) Cada vez que a ministra ataca as possibilidades de se introduzir a educação sexual nas escolas, estimula a manutenção desses índices de gravidez indesejada na adolescência. (Foto: Nações Unidas / Pierre Albouy)
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No governo Bolsonaro, o poço não tem fundo. Vibrei de alegria com a saída de Abraham Weintraub do Ministério da Educação, mas agora o novo ministro-pastor também diz barbaridades, como: nas universidades ensinam “sexo sem limite”. Caramba. Anos a ensinar aulas teóricas na Unifesp e perdi a parte mais interessante. Depois da declaração do ministro apareceram as típicas vozes para afirmar que se trata de pura cortina de fumaça. Nunca me senti confortável com a expressão “cortina de fumaça”. Com frequência penso que ela serve para menosprezar pautas ou assuntos da maior relevância, e sua qualificação como “fumaça” me faz refletir se não estaríamos esquecendo ou desmerecendo temas que deveriam ser protagonistas das nossas lutas, pois são protagonistas do cotidiano do povo brasileiro.

Cada vez que a ministra Damares Alves faz algumas de suas declarações constrangedoras, que deveríamos tratar as meninas como princesas e os meninos como príncipes, que as meninas são vítimas de abuso sexual na Ilha de Marajó por não vestirem calcinha, ou que na Holanda as escolas repartem cartilhas para ensinar os pais a como massagear sexualmente crianças… sempre tem muita gente reclamando que prestamos atenção demais a estas declarações, que nos indignamos demais, que não deveríamos reagir tanto, pois seriam cortinas de fumaça para esconder problemas maiores.

Problemas maiores. No caso de Damares, na quase totalidade das vezes em que escuto esse argumento, eles partem de homens heterossexuais. Não por acaso, várias estimativas policiais e de pesquisa apontam que, no Brasil, pode haver ao redor de meio milhão de estupros por ano, dos quais só 10% são notificados. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, metade das vítimas de estupros é de meninas de até 13 anos. Também segundo o Fórum, em 2018 foram registrados 1.206 feminicídios. Isso não é cortina de fumaça. Cada vez que a ministra Damares se refere a meninas como princesas, ela reforça a cultura do estupro que ameaça e matas tantas mulheres brasileiras.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, em 2018 o Brasil teve 68,4 bebês nascidos de cada mil meninas entre 15 e 19 anos. Cada vez que a ministra ataca as possibilidades de se introduzir a educação sexual nas escolas, estimula a manutenção desses índices de gravidez indesejada na adolescência, que acaba com o futuro de tantas meninas.

Em 2018, mostra o relatório anual do Grupo Gay da Bahia, houve 420 vítimas fatais de LGBTfobia no Brasil. Cada vez que Damares fala em meninos príncipes, colabora com esses números terríveis, que não são cortina de fumaça.

Uma das coisas que mais me impactam quando falo com o público pobre evangélico, principalmente pentecostal e neopentecostal que votou em Bolsonaro, é a força que os argumentos aparentemente estapafúrdios do governo sobre sexualidade tem entre muitos. O que para muitos de nós é ridículo, absurdo, grotesco, faz sentido para muita gente.

Lembro que durante a campanha eleitoral repeti muitas vezes que um dos nossos grandes erros foi ter rido e caricaturizado o kit gay ou a mamadeira de piroca, disparatados para nós, absolutamente críveis para muita gente. Num país onde milhões não encontram resposta nenhuma na política e no Estado, a família, as relações privadas e a igreja são as únicas opções que permitem manter redes de apoio econômico, afetivo, psicológico e espiritual.

Quando alguns sentem no seu cotidiano só poder contar com sua rede de apoio familiar, percebem que suas famílias e seus filhos são atacados porque Damares falou, porque o pastor falou, porque o novo ministro-pastor falou, porque o grupo de WhatsApp falou sobre o kit gay. Sentem medo e uma enorme preocupação. Quantas vezes ouvi de mães pobres fieis da Igreja Universal, da Assembleia de Deus, da Deus É Amor, que sentiam medo por seus filhos e suas famílias se o PT ganhasse a eleição. O medo delas era real, não era cortina de fumaça.

Não tenho certeza de qual deveria ser a nossa melhor estratégia. Só sei que vivemos num Brasil que tem mais de apartheid do que de convívio. Tanto que nem sequer conseguimos entender que o que não faz sentido para nós faz sentido para milhões de brasileiros. Milhões.

As cortinas de fumaça podem matar e, com certeza, as cortinas de fumaça, quando não são disputadas, fazem perder eleições. Comecemos a prestar atenção, pois as mamadeiras de piroca da vida fazem sentido para muita gente. Não entender isso significa que continuaremos a acumular derrotas.

Cortina de fumaça para uns. A vida para outros.

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