

Opinião
A América Latina e o mundo se despedaçam. Mas o Brasil segue inerte
Ao que tudo indica, um pessimismo endêmico vem recobrindo boa parte do planeta


Reza a tradição que o pêndulo da América Latina se movimenta quase sempre pro mesmo lado: em efeito dominó, a manifestação de alguma tendência num país reverbera em outros, o que se acentua num contexto tecnológico onde as informações circulam em velocidade supersônica por força das ferramentas de comunicação e expressão. As inolvidáveis manifestações da chamada Primavera Árabe tornaram-se paradigmáticas desse arranjo comunicacional emergente.
Não se tem como negar esse traço latino-americano que expõe as veias abertas da região, para lembrar Eduardo Galeano, e nos faz partilhar situações comuns, processos políticos semelhantes, no passado e no presente. Vale a ressalva de que a orquestração de alguns acontecimentos responde à necessidade de reação quase perpétua de um pedaço do planeta onde as desigualdades insistem, a despeito de algumas mudanças, e não a um movimento irrefletido das massas que se comportam como gado.
A título de certificação, apelemos a pequeníssimas fatias da história: a experiência sangrenta das ditaduras militares; a ascensão de governos de esquerda nos anos 2000; o enlace recente com governos de direita e extrema-direita (Colômbia, Argentina, Chile, Brasil)…
As manifestações públicas no Chile, no Equador e na Colômbia, que incendiaram a cena pública nas últimas semanas, parecem confirmar a velha tradição acima referida. Ao que tudo indica, a lua de mel com os governos de direita que ascenderam em meados desta década vem se encerrando de forma litigiosa, pondo em evidência uma insatisfação em escala regional com o receituário político e econômico em curso (as eleições presidenciais na Argentina e municipais em Bogotá, que pela primeira vez elege uma prefeita mulher e lésbica, disso dão testemunho).
Assistimos a eclosões que demonstram em graus variáveis o cansaço da população frente à incapacidade de o neoliberalismo garantir o mínimo para a sobrevivência de milhares num cenário de desaceleração e crise econômica. Em contextos como esse, de descontentamento elevado, é de se esperar convulsões diversas numa região em que o caldeirão de protestos compõe sua paisagem política, impulsionada por uma cultura de mobilizações.
Os dados são inequívocos: mesmo saindo praticamente incólume da crise global de 2008, a América Latina sente os efeitos retardatários do tsunami financeiro que abateu primeiramente a Europa e os EUA. Segundo o FMI, a região crescerá 0,2%, ao passo que as economias asiáticas têm previsão de crescimento de 5,9%, em média, e as africanas, 3,2%. Neste cenário infausto, os governantes desses países convertem-se em meros porta-vozes de uma política rentista que insiste em tornar incompatíveis interesses do mercado com os direitos do cidadão. A piora nos serviços públicos e a impossibilidade de a população pagar por serviços privados se fazem sentir no tecido social; tornou-se indisfarçável o aumento exponencial da pobreza e da desigualdade.
Há uma percepção generalizada de que a diminuição da pobreza do ciclo anterior, durante os governos da esquerda, chegou ao fim (a redução da pobreza no período de 2000 a 2012 na América Latina guarda semelhanças com o pós-Segunda Guerra Mundial, momento em que a região apresentou melhoras nesta questão num momento em que subia em outras partes do mundo).
Percebe-se igualmente que as mudanças estruturais (melhora na educação nos anos 90 e seu efeito no mercado de trabalho; incremento das políticas sociais, aumento de transferência de renda aos mais vulneráveis) e conjunturais (a farra das commodities nos anos 2000, aumento de mão de obra menos qualificada) não integram, nem remotamente, o horizonte dos nossos dias. Tudo somado, tem-se como resultado pura nitroglicerina para que as ruas permaneçam em estado de combustão.
O mundo em labaredas: o que pode ressurgir das cinzas?
Ao que tudo indica, um pessimismo endêmico vem recobrindo boa parte do planeta. Do Líbano a Hong Kong, de Barcelona a Londres, do Iraque a Argel, sem falar na França, acossada desde 2018 com o levante dos coletes amarelos, as pessoas ocupam as ruas seguindo uma trajetória que se ramifica em três pistas e se bifurcam em tantas outras: rejeição às políticas de austeridade, rechaço aos governos nacionais-populistas (alguns com traços neofascistas), denúncia do agravamento da desigualdade e da pobreza.
Embora essas manifestações tenham sido motivadas na maioria desses países por um fato concreto – no Líbano o disparador foi a taxa sobre o WhatsApp; no Chile, o aumento da passagem de metrô; em Barcelona, os impasses do movimento independentista; em Londres, a busca de uma solução minimamente decente para o Brexit; em Hong Kong, o levante contra a ingerência chinesa e a reivindicação por direitos – o fio condutor que as mantêm ligadas relaciona-se a um mal-estar generalizado, resultado de um receituário ultraliberal que demonstra flagrante descompasso com qualquer política que avente inclusão e desenvolvimento. No Iraque e em Argel o levante ganhou feição mais generalista, com os iraquianos denunciando a falácia da democracia e os argelinos emitindo fortes sinais de esgotamento.
Tomando o exemplo mais proeminente, o Chile, vimos que as veias abertas do país expuseram profundos descontentamentos com a condução da política econômica e ira com a declaração cínica do ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, que aconselhou os chilenos a acordarem mais cedo ao ir ao trabalho para adquirir passagem de metrô mais barata. Tamanho descontentamento (as manifestações já são as maiores do pós-ditadura Pinochet com mais de um milhão de pessoas) não espelhou a visão do presidente Sebastián Piñera, que disse poucos dias antes dos protestos que o Chile vivia um verdadeiro oásis, uma calmaria. Desconectado da realidade do seu país, Piñera viu o oásis imaginário e fictício se transformar num inferno real e concreto em questão de horas.
A estética das manifestações no Chile e para quando, Brasil?
É com o filósofo Walter Benjamim que aprendemos que a arte é uma brecha. Esta definição tão sucinta quanto bela reposiciona o papel da arte no campo político e nos leva a imaginar horizontes do possível ainda não ruminados na aridez do cotidiano. Nas ruas do Chile flagramos cantos líricos, violões, grand jeté (salto das bailarinas) e outros gestos artísticos que se opõem à brutalidade neoliberal, responsável por construir sujeitos e subjetividades fraturados.
Contra a violência que tentou sufocar as manifestações (o saldo até agora foi de 20 pessoas mortas e centenas de feridos), uma celebração da vida, mas não de qualquer vida. Não nos enganemos: a forma e a estética das manifestações chilenas são pedagógicas, nos ensinam que é preciso opor aos planos de austeridade uma outra ideia de vida, que seja desejável e desejante. Desde o movimento Occupy Wall Street captamos, de forma ruidosa e nem sempre cristalina, certa repugnância pela vida que somos forçados a viver.
Como se costuma dizer, excetuando os tecnocratas de Bruxelas, os advogados de Wall Street, os bilionários, os oligarcas, os donos dos grandes conglomerados de mídia, que constituem menos de 5% da população, todos nós, rigorosamente todos, somos perdedores do capitalismo financeiro. Como podemos, assim, postular outra noção de vida?
Retomando Benjamin, se a arte é uma brecha capaz de instalar horizontes do possível é necessário, desse modo, que saibamos fazer a crítica da contemporaneidade (temos que estar à altura do cotidiano, afirmou o sociólogo Max Weber) conectando fios soltos que explicam a política da inimizade (expressão reatualizada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe), principal vetor do neoliberalismo: austeridade, confisco de direitos, racismos, terror, militarização, necropolítica são pressupostos e atributos da guerra colonial que se trava agora contra povos e nações subalternizados do ponto de vista das liberdades civis, sociais, culturais, religiosas, políticas.
Pensar a política nesses termos exige que retrocedamos várias casas da história e localizemos as raízes arcaicas que dinamizam a lógica da inimizade que avança sobre as sociedades contemporâneas. Tenho ouvido e lido algumas confabulações sobre quando e como as manifestações chegarão ao nosso país e se chegarão. Tais confabulações só podem carregar algum germe de seriedade se detivermos nosso olhar para as franjas do nosso país, as topografias da crueldade, e percebermos que as subjetividades insurgentes estão sob controle militarizado. Em suma: já estamos em estado de guerra.
A esse respeito, comenta o professor Vladimir Safatle: “pergunta-se por que tais insurgências não ocorrem no Brasil. Até mesmo comentários a respeito da falta de ‘bravura’ do povo brasileiro começam a circular. Quem acredita em explicações psicológicas dessa natureza deveria subir algum dia o Complexo do Alemão a fim de ver ruas com barricadas, com grandes tonéis de concreto construídos pela própria população a fim de impedir a subida de “caveirões” da polícia. Eles poderiam também ver os telhados cheios de projéteis de fuzis militares e ouvir os relatos de mães que contam a história do extermínio de seus filhos pelas “forças da ordem”. Ou seja, a relação entre estado e populações pobres e negras no Brasil só pode ser descrita de forma precisa mobilizando conceitos como “guerra civil não declarada” e “praça de guerra”.
Tanto no Chile quanto no Brasil, ruas, vielas e reservas naturais estão em estado abrasivo, com a diferença que aqui muitas das almas bem intencionadas ainda acreditam, assim como Sebastián Piñera, que o clima seja de calmaria e apatia. Mais do que nos perguntarmos quando e como iremos às ruas, seria mais produtivo sondarmos quando e como poderemos nos juntar às humanidades subalternizadas, indígenas e negros, que desde 1º de janeiro vêm tentando sobreviver à política de morte de um projeto neoliberal em virtude do perigo que a sua presença significa para a financeirização desbragada que riscou o céu do planeta.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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