Justiça
A fatura amarga do bolsonarismo ao Ministério Público
Augusto Aras, escolhido fora da lista da PGR, é o preço salgado do derretimento institucional brasileiro


Bolsonaro, ao indicar o incógnito Augusto Aras para o cargo de Procurador Geral da República, me fez lembrar um samba, imortalizado pela espetacular Beth Carvalho: “você pagou com traição/A quem sempre lhe deu a mão”.
Explico. Desde o primeiro mandato de Lula, tomou-se uma decisão política: em espelhamento ao que acontece nos Ministérios Públicos dos Estados, o Ministério Público Federal, através de seus procuradores, elegeria uma lista, composta por três de seus membros que houvessem se lançado candidatos e debatessem suas propostas.
É democrático e republicano que a classe discuta enérgica e intensamente seus rumos com seus candidatos; da lista tríplice, o Presidente indicaria um, para ser sabatinado do Senado Federal.
No sistema que vigorava, os Procuradores Gerais tinham legitimidade entre seus pares para processar as autoridades federais que somente o PGR pode processar, em razão do tal foro privilegiado perante o Supremo Tribunal Federal. Uma das formas de se mitigar eventual privilégio para o bacana federal era ter na Procuradoria Geral pessoas independentes e fortes internamente para bater doído em quem e quando precisasse.
Ao romper com essa prática política dos governos petistas, que garantiu a autonomia e independência de fato da Procuradoria Geral da República, Bolsonaro rompe um pacto democrático e traz o PGR em seu cabresto.
Com um encabrestado, essa autonomia se esvai no ralo dos favores políticos e teremos o que sempre se abominou: um procurador geral que nasce fraco e que se sustenta na fidelidade canina a quem o nomeou. Afinal, ele não precisou sequer lutar pelo cargo, expor-se a seus pares, nadica.
Se Lula ou Dilma fizessem o que Bolsonaro acabou de fazer, o mundo teria caído mil vezes sobre suas cabeças.
Quem quer que fosse que tivesse em sua trajetória alguma vivência com o Ministério Público e mesmo com o Judiciário sabia que seus integrantes passaram, em determinado momento, a ter no antipetismo uma obrigação elementar e a ver em Bolsonaro o perdão para todos os males incorporados nos riscos – sei lá com que lente histórica – de nos transformarmos em Cuba ou Venezuela.
Agora, passados tantos absurdos no governo que as carreiras apoiaram, os protestos que ouço são baixinhos e tímidos, típicos de quem se decepcionou com o tiozão bacana, porque percebeu que o cara cheio de balas, na verdade, é sinistro e violento. O mínimo que se esperaria é que os procuradores da república se recusassem a receber o novo chefe, seja porque ilegítimo, seja porque vindo em conversas que jamais se revelarão, mas onde estão eles?
A grande maioria de membros dessas carreiras votou em Bolsonaro e engrossou seu discurso.
Ao invés de vê-los agindo como meninos e meninas rebeldes, que se demitem do que não podem se demitir, como no caso da Lava-Jato, seria o caso de vê-los praticando a independência funcional. Todos parecem recolhidos, temerosos, sem saber do que é capaz o chefão que está chegando.
Sosseguem, ele vai chegar manso e seletivo; a turma – a maior parte da carreira – que esteve e estiver com Bolsonaro terá vida boa e não será incomodada. Os que não estiverem, ai ai ai, esses estarão ao desabrigo das intempéries dos dissabores funcionais, lamentavelmente.
Mas um momento de ouro para engrandecer o Ministério Público Federal e seus integrantes e funcionários se vai. A reação tímida e envergonhada, uma reação quase autorizada, diminui ainda mais essa Instituição, que conhecerá dias horríveis que virão.
Os procuradores pagam o preço da própria omissão.
Lamento, mas não lastimo.
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