Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
Pantagruélicas
Como um gibi japonês abriu os olhos dos mais jovens para o vinho
O sucesso de ‘Drops of God’, no papel e na TV, transformou rótulos comuns em objetos de desejo
Para os amantes de séries sobre comida e bebida, o início do ano promete. A Apple TV confirmou para 21 de janeiro de 2026 a estreia da segunda temporada de Drops of God. Para os que veem a taça meio vazia, pode parecer apenas mais um drama sobre gente rica e seus problemas de herança. Mas, para quem a taça está sempre cheia, o retorno de Camille (Fleur Geffrier) e Issei (Tomohisa Yamashita) é a celebração do retorno de um fenômeno cultural que cruzou oceanos, abriu os olhos da nova geração para o vinho e… inflacionou o preço de alguns rótulos.
A série é adaptação de um mangá que atravessou fronteiras. Nascida em 2004, a HQ japonesa Kami no Shizuku fez o que décadas de marketing europeu não conseguiram: democratizou o vinho para uma juventude asiática sedenta por novos códigos culturais.
A obra original traz como protagonista o filho rebelde de um crítico de vinhos lendário, que precisa cumprir tarefas hercúleas de degustação para garantir sua herança. O obstáculo? Em seu leito de morte, o pai adota um segundo filho — um crítico “superstar” levemente diabólico — criando uma disputa fratricida pelo espólio milionário.
Em cada “capítulo”, os vinhos são descritos em detalhes, muito além das notas de críticos. Um exemplo ocorre quando o protagonista prova um Château Mont-Pérat 2001. Ao levar a taça à boca, ele não sente apenas frutas negras; ele encontra Freddie Mercury. “É poderoso”, diz ele sobre o vinho, “mas também tem um sabor doce e derretido, com um retrogosto ácido que te pega de surpresa. É como a voz do vocalista do Queen: doce e rouca, envolta em riffs de guitarra densos e bateria pesada.”
Um Bordeaux honesto, sem badalação, vendido a módicos 15 euros, o Château Mont-Pérat foi alçado a mito após ser descrito nas páginas dos quadrinhos. O resultado? A produção dobrou e o preço da garrafa decuplicou para 150 euros. É a prova cabal de que, no mundo do vinho, bebemos histórias tanto quanto bebemos uvas.
Outros produtores citados na trama, como os bordeaux Château Palmer e Calon-Ségur, viram suas vendas no Japão saltarem 130% no primeiro ano de publicação. Na Coreia do Sul, o impacto foi estrutural: o vinho fino, antes um nicho, passou a dominar cerca de 70% do mercado de álcool, impulsionado diretamente pela febre do mangá.
Não à toa, o governo francês condecorou os criadores da obra com a Ordem do Mérito Agrícola e a Ordre des Arts et des Lettres.
Drops of God está longe de equiparar a um medalhão como Família Soprano, mas é uma boa diversão. A presenta uma disputa shakespeariana por uma herança de 150 milhões de dólares e uma adega de 87 mil garrafas. O trunfo é a linguagem, acessível e contemporânea, sem fazer com que o universo do vinho soe pretensioso.
Para a segunda safra, que chega em janeiro, a busca deixa de ser apenas uma disputa por herança para se tornar uma caçada global pela “origem do maior vinho do mundo”. Esperam-se mais terroir, mais mistério e, certamente, mais desejo de consumo.
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