Política
Cumpra-se
A Justiça Civil fez a sua parte. Falta a Militar
Cinco militares, entre eles um ex-presidente da República, estão em cana pela tentativa de golpe de Estado. Um momento histórico no Brasil: nunca aconteceu antes. O capitão Jair Bolsonaro, os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e Walter Braga Netto e o almirante Almir Garnier pegaram penas que variam de 19 a 27 anos. Ficarão na cadeia ao menos até 2030, quando alguns começam a completar 25% de sentença e poderão invocar bom comportamento para reivindicar o regime semiaberto. A cela de Bolsonaro fica na Polícia Federal e a dos outros quatro condenados, em unidades militares. Todos têm certas regalias, como banheiro privativo. Um civil sentenciado no mesmo processo é o único do alto escalão golpista em uma penitenciária comum, a Papuda, em Brasília, embora em uma ala de autoridades, a Papudinha.
Esse civil não ficará apenas sem a liberdade (pena de 24 anos). Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, é delegado da Polícia Federal e dará adeus ao distintivo para sempre. Basta um ato administrativo da PF para materializar a decisão do Supremo Tribunal Federal. Há outro civil-delegado punido na mesma ação penal que o STF acaba de declarar encerrada: Alexandre Ramagem, ex-chefe da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência. Ele ficará sem o cargo na PF, mas por ora escapou das grades (pena de 16 anos). Enganou as autoridades após o julgamento em setembro e se mandou para o exterior, é considerado foragido pela Justiça. Curte a vida nos Estados Unidos, lar do autoexilado Eduardo Bolsonaro, seu colega de Câmara dos Deputados. No dia em que o pai começou a cumprir pena, em 25 de novembro, Eduardo foi convertido pelo Supremo em réu por conspirar no Tio Sam contra o Brasil. Donald Trump, o presidente norte-americano, lamentou a prisão de Bolsonaro. Para Lula, o mandatário brasileiro, tratou-se de “uma lição de democracia”.
Os oficiais envolvidos na trama golpista serão agora julgados pelo STM
Em relação ao mandato de Ramagem, o tribunal ordenou à Câmara seguir a Constituição, baixar um ato administrativo para cumprir a decisão judicial e cassá-lo. Confusão à vista. A Câmara não fez isso até hoje com Carla Zambelli, castigada com cinco anos de prisão em agosto pelo STF por porte ilegal de arma. Alega que quem tira mandato são os deputados, não a toga, e que se baseia na Constituição para fincar o pé nessa posição. No caso do quinteto fardado encarcerado, quebrar o cordão com o Estado promete ser difícil também. Será necessário um julgamento adivinhe onde, leitor? Na Justiça Militar. E as pistas não são encorajadoras para quem espera que os quartéis também façam história e sejam severos contra os golpistas.
Na sentença dos cinco oficiais punidos está escrito que o Superior Tribunal Militar é obrigado a decidir sobre a perda dos postos e das patentes. Segundo o artigo 142 da Constituição, que define o papel das Forças Armadas, um oficial condenado a mais de dois anos de prisão perde os dois, na hipótese de seus pares entenderem que ele teve uma conduta indigna ou incompatível. O exame da conduta, em uma espécie de tribunal de honra, ocorre no STM. A trama golpista levou até agora à condenação de 21 oficiais. Outros dois serão julgados em dezembro. O único coturno que se livrará de ter a honra escrutinada é o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro na Presidência. Cid negociou um acordo de delação no qual solicitou, em troca, que não pegasse mais de dois anos de cadeia. As autoridades toparam.
Freud explica: Flávio e Eduardo Bolsonaro apressaram o “martírio” do pai. Na porta da PF, há menos fanáticos do que se supunha – Imagem: Evaristo Sá/AFPe Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
De 2018 para cá, o STM avaliou a dignidade de 94 oficiais e puniu 81. Entre os réus não havia, porém, general, almirante ou tenente-brigadeiro do ar, o topo hierárquico de cada uma das forças. Quando há condenação por honra, o oficial perde o direito ao salário militar. Bolsonaro embolsa 12 mil reais por mês como capitão reformado. Ele esteve na berlinda no STM no passado e de certa forma deve a carreira política à Corte. Em 1986, era paraquedista e publicou na revista Veja um artigo no qual reivindicava aumento de salário. Por causa da indisciplina, ficou 15 dias detido em um quartel. No ano seguinte, o semanário noticiou que ele planejava explodir bombas em locais públicos do Rio de Janeiro, em defesa da causa salarial. Três coronéis da unidade militar do capitão investigaram-no e defenderam uma punição. O processo chegou ao STM. O tribunal inocentou-o por 9 votos a 4 em junho de 1988. A notoriedade e a absolvição pavimentaram a eleição para vereador dali a cinco meses.
Como presidente mais de três décadas depois, Bolsonaro indicou um terço dos atuais 15 juízes do STM. A Corte é composta de cinco civis e dez militares, dos quais quatro do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica. A bancada da Marinha foi inteiramente nomeada por Bolsonaro. O almirante Garnier, um dos condenados ao lado do ex-presidente, chefiou as tropas navais entre 2021 e 2022, era um rematado golpista, conforme afirmaram os últimos comandantes do Exército e da FAB no governo passado. A presidente do STM, Maria Elizabeth Rocha, é civil e a mais antiga na Corte, sua decana. Ingressou em 2007, pelas mãos de Lula. Há mais três nomeados pelo petista. O vice do tribunal, o tenente-brigadeiro do ar Francisco Joseli Camelo, foi piloto dos aviões presidenciais nos dois primeiros mandatos de Lula. Sua ascensão ao STM coube a Dilma Rousseff, em 2015.
“Uma lição de democracia”, afirmou o presidente Lula
Em outubro passado, Maria Elizabeth pediu “perdão” ao País por causa dos erros da Justiça e da ditadura. Referia-se ao regime inaugurado pelo golpe de 1964, pois falou em um evento celebrado para lembrar a morte de um perseguido político, o jornalista Vladimir Herzog. O juiz Carlos Augusto Amaral Oliveira, da FAB, não gostou do “perdão”. É um dos indicados de Bolsonaro e, presumivelmente, um nostálgico do regime militar. Oliveira criticou a colega em uma sessão plenária sem a presença da presidente da Corte. “Estude um pouco mais de história” para “opinar sobre a situação no período histórico a que ela se referiu e sobre as pessoas a quem pediu perdão.” A decana revidou na sessão seguinte, pela frente: “Misógino”, “agressão desrespeitosa”. E renovou o perdão.
Oliveira está por trás de outra pista desanimadora sobre o que acontecerá no STM com os golpistas. Coube a ele cuidar de um processo de oito militares que assassinaram, em 2019, um músico e um catador de lixo no Rio. Os acusados, todos “praças”, não oficiais, metralharam o carro de Evaldo Rosa, por terem alegadamente confundido o veículo com outro que havia sido roubado pouco antes. O catador Luciano Macedo tentou socorrer Rosa e tomou bala também. Os atiradores foram condenados a quase 30 anos de prisão, por homicídio doloso, na primeira instância da Justiça comum. Apelaram ao STM. O processo caiu nas mãos de Oliveira. O voto do relator saiu vitorioso em dezembro de 2024: absolvição geral no caso da morte de Rosa, sob o argumento de que não seria possível identificar os autores dos disparos, e redução da pena para três anos no caso de Macedo, um homicídio reclassificado pelo relator como “culposo”, ou seja, não intencional.
Imagens: Marinha do Brasil, STF, PT na Câmara, Ministério da Defesa, Agência Brasil e Agência Senado
No caso dos oficiais golpistas, o STM não tem competência para mudar a decisão do Supremo. Poderá julgar somente a honra dos acusados. Para isso, é preciso antes que o procurador-geral da Justiça Militar, Clauro Roberto de Bortolli, mova um processo. Bortolli está no cargo desde o ano passado, por escolha do procurador-geral da República, Paulo Gonet. É de se supor que apresentará a denúncia, pois foi Gonet quem acusou os golpistas no Supremo. Na eventualidade de os oficiais vierem a ser tidos como desonra para os quartéis, há uma consequência pecuniária. A perda do salário da farda. Suas esposas ou filhas poderão, no entanto, embolsar os proventos, graças a uma reforma da Previdência Militar feita no governo Bolsonaro. Parece até que a turma antevia o futuro.
A reforma proporcionou benefícios remuneratórios ao oficialato. Um deles é a chamada morte “ficta” (fictícia). Quando um oficial da ativa, da reserva ou reformado perde posto e patente, seus vencimentos passam a ser pagos à família, na forma de pensão. É como se o integrante das Forças Armadas tivesse morrido. Em dezembro de 2024, Lula enviou ao Congresso uma lei para acabar com a mamata. O texto está parado na Câmara dos Deputados desde sempre. Nem Arthur Lira, o comandante da Casa na época, nem Hugo Motta, no posto desde fevereiro, tocaram no tema.
Motta e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, estão com má vontade com o Palácio do Planalto, eis uma das razões para a extrema-direita alimentar esperanças de aprovar uma anistia parlamentar a golpistas. O senador Flávio Bolsonaro afirma que o pai fez um “pedido direto” à dupla que manda no Congresso para o perdão ser votado. O líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, diz e repete que há votos suficientes para aprová-la. Ao assumir a relatoria do projeto por designação de Motta, o deputado Paulinho da Força passou a trabalhar não pelo perdão, mas por mudanças no Código Penal que, na prática, reduziriam a pena dos golpistas.
O bolsonarismo ainda alimenta o sonho da anistia ou da redução das penas
Apesar de pregar “anistia ampla, geral e irrestrita” em público, comenta-se no Congresso que, nos bastidores, Flávio topa a solução da “dosimetria” proposta por Paulinho. O senador tornou-se o porta-voz do capitão e desponta como presidenciável do núcleo duro da extrema-direita no próximo ano. O bolsonarismo raiz, incluído o clã de Jair, não confia em ninguém do leque de opções para concorrer, nem mesmo naqueles que prometem indultar golpistas caso sejam eleitos, como os governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Ronaldo Caiado, de Goiás. Querem alguém comprometido por sangue com o capitão.
O mandato de Flávio termina em 2026 e uma reeleição parece mais fácil, haverá duas vagas de senador por estado em disputa. Enfrentar Lula e sair derrotado deixaria o “Zero Um” na chuva e desfalcaria o clã na política. Além de Jair, Eduardo tem tudo para ficar fora das urnas em 2026, por conta da ação penal aberta no Supremo. Deve ser julgado ainda no primeiro semestre e, caso condenado, ficará inelegível. Por outro lado, Michelle Bolsonaro, a ex-primeira-dama, tem chances de se eleger senadora pelo Distrito Federal, em aliança com o atual grupo no poder local. O governador Ibaneis Rocha empenhou-se para mostrar ao Supremo que a Papuda não teria condições de ser o local para Bolsonaro cumprir a pena.
Carlos Bolsonaro, vereador no Rio, também quer o Senado, pelo estado mais reacionário, Santa Catarina, por onde tem viajado nos últimos tempos. A pretensão rachou o direitismo catarinense. Nas costuras de Jorginho Mello, do PL, para reeleger-se governador em 2026, as vagas ao Senado na chapa seriam da deputada campeã de votos no estado, Caroline De Toni, do PL, e do atual senador Esperidião Amin, do PP. Carlos precisa tirar um dos dois do páreo. Detalhe: Michelle diz estar fechada com De Toni. São conhecidas as desavenças entre madrasta e enteado.
Ramagem, fujão, vai à academia em Miami, enquanto os comparsas pagam pelos crimes – Imagem: Redes Sociais/PlatôBR
Além de atual porta-voz do pai, Flávio é o responsável por antecipar a ida do capitão para uma cela na PF. Ao convocar uma vigília religiosa para a porta da casa do ex-presidente em Brasília, em 22 de novembro, acendeu o alerta na polícia. Na visão dos federais, desenhava-se um salseiro destinado a facilitar a fuga do capitão da prisão domiciliar em que estava desde 4 de agosto. Não era uma suspeita infundada, vide a escapada de Ramagem para os EUA, o pernoite mal explicado de Bolsonaro na Embaixada da Hungria logo após ter tido o passaporte confiscado, em fevereiro de 2024, e a solicitação de asilo na Argentina redigida pela esposa de Flávio. A PF enviou ao juiz Alexandre de Moraes, do STF, um pedido para converter a prisão domiciliar em preventiva, o que significava trancar o capitão em um estabelecimento prisional. Gonet concordou. Moraes também.
O magistrado recebeu um informe da diretora-adjunta do Centro Integrado de Monitoração Eletrônica de Brasília, Rita de Cássia Gaio Siqueira, sobre a violação da tornozeleira do ex-presidente à meia-noite e sete minutos de 22 de novembro. Moraes já sabia do fato e havia decidido expedir o mandado de prisão logo ao ser informado do “incidente” nas primeiras horas do dia. Bolsonaro queimou o equipamento com um ferro de solda, conforme contou a Siqueira pessoalmente em casa. A versão inicial dada pelo ex-presidente a policiais nas imediações de sua residência era uma mentira: teria batido a tornozeleira em uma escada. Os advogados e os filhos alegam que Bolsonaro foi acometido por uma alucinação, um surto, em decorrência de remédios, daí a solda e as versões desencontradas.
A defesa do ex-presidente insistirá na prisão domiciliar. Há o precedente collor de Melo
Tudo somado, e tendo-se em mente que a casa do capitão fica a 15 minutos de carro da Embaixada dos EUA, Moraes concluiu existir “altíssimo risco” de o ex-presidente tentar escapar da pena de 27 anos. E decretou a preventiva. Três dias depois, o cárcere da PF tornou-se definitivo, em razão de o Supremo ter declarado encerrado o processo. Todos os recursos apresentados pelas defesas dos condenados foram negados por unanimidade no tribunal.
O general Braga Netto cumprirá a pena de 26 anos no mesmo local da prisão preventiva em que está desde dezembro de 2024, o Comando da 1ª Divisão do Exército na Vila Militar do Rio de Janeiro. Ele foi chefe do Exército e ministro da Casa Civil e da Defesa no governo Bolsonaro, além de candidato a vice-presidente na última eleição. O almirante Garnier ficará na Estação Rádio da Marinha, a 33 quilômetros da capital brasileira. Os generais Paulo Sérgio, ex-ministro da Defesa, e Augusto Heleno, ex-chefe do GSI, foram enviados para o Comando Militar do Planalto, em Brasília. Ao passar por um exame de corpo de delito antes, Heleno afirmou sofrer de Alzheimer desde 2018. Parece um esforço para sensibilizar o STF e arrancar uma prisão domiciliar. É, no entanto, uma revelação espantosa, na hipótese de não se tratar de fake news. O Brasil teria tido por quatro anos à frente da Segurança Institucional do País alguém literalmente – e não só no sentido figurado – sem condições mentais de ocupar o cargo.
Trump lamentou discretamente. Lula celebrou. A dinâmica das relações entre EUA e Brasil é cada vez menos influenciada pelo clã Bolsonaro – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
A família Bolsonaro igualmente tenta convencer o STF de que o capitão merece cumprir a pena em casa. Ele tem graves problemas de saúde, decorrentes da facada que tomou em 2018, e completou 70 anos, duas premissas legais para requerer o benefício. O tribunal aceitou um pedido semelhante feito pelo ex-presidente Fernando Collor em maio. Collor havia sido condenado em 2023 a oito anos por corrupção e lavagem de dinheiro. O caso foi encerrado em abril passado. O alagoano passou uma semana em um presídio comum no seu estado natal, até conseguir a prisão domiciliar, autorizada, por coincidência, por Alexandre de Moraes, relator do processo.
Os filhos do capitão alardeiam que o juiz intenciona “matar” Bolsonaro, que o submete a tortura e invocam o respeito aos “direitos humanos”. Quanta hipocrisia. Para a extrema-direita, Jair à frente, direitos humanos só servem para “humanos direitos”, tortura é método elogiável tanto no tempo da ditadura quanto nos porões policiais de hoje, presídio lotado é problema de criminoso. Ver o capitão e todos os seus golpistas punidos e na cadeia é, como disse Lula, uma “lição de democracia”. Resta saber o que a Justiça Militar decidirá sobre a honra de Bolsonaro e cia. •
Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cumpra-se’
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