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Curitiba ou Salém?

O deputado Renato Freitas volta à mira do reacionarismo. E agora ganha a companhia da Professora Ângela

Curitiba ou Salém?
Curitiba ou Salém?
No cangote. Freitas vai enfrentar um novo processo de cassação. Professora Ângela viu-se obrigada a recorrer à Justiça para não perder o mandato – Imagem: Redes Sociais/Câmara Municipal de Curitiba
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Sobrevivente de inúmeros processos de cassação, o deputado estadual Renato Freitas, do PT, voltou à mira dos desafetos na Assembleia Legislativa do Paraná. Freitas foi às vias de fato com um manobrista no centro de Curitiba. O vídeo, no qual imobiliza o oponente e está ensanguentado, viralizou nas redes sociais. Desculpa perfeita para os detratores. Na segunda-feira 24, o Conselho de Ética abriu nova investigação contra o parlamentar, mas o presidente do colegiado, Delegado Jacovós­, do PL, afirmou que o caso só será concluído em março do próximo ano, por causa do recesso da Casa. Jacovós é um dos integrantes da turma que adora fazer bullying contra o colega. Recentemente, recepcionou policiais militares acompanhados de um cão farejador da Polícia Militar durante uma reunião da Comissão de Constituição e Justiça. No fim da sessão, em tom de sarcasmo, perguntou a Freitas “se havia algum problema de o cão chegar ao seu lado”, insinuando que o petista poderia portar drogas. Para a decepção de Jacovós, o pastor-alemão mostrou-se bem amigável.

Freitas justifica o destempero na rua. Sua mulher está grávida de nove meses e ambos quase teriam sido atropelados quando saíam de uma consulta médica. Tratou-se, diz, de uma manobra imprudente, direção perigosa. “Olhei para o lado e falei ‘respeita o pedestre’ e continuei andando. Ele me encarou, abaixou o vidro e me xingou, me injuriou. Me chamou de ‘lixo’ e de ‘nóia’.” Nas imagens não é possível identificar a agressão verbal antes da briga. Agora, o deputado, terá de percorrer novamente a via-crúcis do processo de cassação. Ele está acostumado. Em 2022, recém-eleito vereador, adversários ideológicos tentaram expulsá-lo por causa da participação em um protesto contra os assassinatos do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, e de Durval Teófilo Filho, em São Gonçalo (RJ), negros. O ato ocorreu na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos na sequência de uma missa.

O petista não só escapou da degola, como acabou eleito para a Assembleia Legislativa. Teve paz? Não, ao contrário. Uma nova representação contra o deputado veio à tona motivada por dois episódios: as denúncias de abusos da Polícia Militar nas periferias e as críticas ao então presidente da Assembleia Legislativa, Ademar Traiano, do PSD, que admitiu ao Ministério Público ter recebido propina. “O senhor é um corrupto confesso, presidente Traiano. Um corrupto!”, denunciou da tribuna. Quem acabou no Conselho de Ética? O denunciante, não quem confessou um crime.

Ambos são alvos da ira das viúvas da Lava Jato

A ira bolso-lavajatista que envenena a vida política e social no Paraná tem sido dirigida a outros representantes do campo progressista. A primeira vereadora eleita pelo PSOL na capital, Professora Ângela, foi obrigada a recorrer à Justiça para escapar de uma cassação. Ao apresentar em audiência pública uma cartilha sobre diferentes tipos de entorpecentes, material típico de políticas públicas de redução de danos, foi acusada de afronta ao Parlamento e de apologia das drogas. Para os colegas da comissão que analisou o caso, a Professora Ângela “constrangeu a Câmara” e “prejudicou a imagem da Casa”. A tentativa de orientar o público foi convertida em crime político, enquanto desigualdade, violência policial e corrupção confessada seguem sem constranger ninguém. A sessão para cassá-la foi suspensa por decisão da juíza Diele Denardin Zydek, da 5ª Vara da Fazenda Pública, e confirmada pelo Tribunal de Justiça, que apontou, entre outros fatores, a suspeição do relator. Mas a ameaça permanece.

O reacionarismo de Curitiba é histórico. Nas eleições presidenciais de 1955, vencidas por Juscelino Kubitschek, o candidato mais votado na capital paranaense foi Plínio Salgado, líder do integralismo brasileiro, o Mussolini caboclo. Em 2023, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes afirmou no programa Roda Viva, da TV Cultura que a cidade “tem o germe do fascismo, inclusive todas as práticas que o desenvolvem. Investigações a sorrelfa e atípicas”. Segundo Ricardo Costa Oliveira, da Universidade Federal do Paraná, o sebastianismo curitibano não é fenômeno simples nem recente, opera em camadas. Algumas são visíveis, expressas em agendas contemporâneas, outras são profundas, enraizadas na formação histórica da cidade e na composição da elite. “Essa combinação entre passado patrimonialista e presente politicamente polarizado criou um terreno fértil para o florescimento de diferentes ideologias que orbitam a direita.”

A cientista política Maria Tarcisa Silva Bega, também da UFPR, avalia que a Operação Lava Jato teve impacto decisivo no processo ao reativar preconceitos adormecidos nos espaços privados. Ao ganhar status de cruzada moral, permitiu que discursos antes inaceitáveis fossem expressados com orgulho. A Lava Jato, diz, criou no imaginário coletivo a figura do justiceiro moderno amparado no formalismo jurídico e autorizado a definir quem é culpado, quem merece perdão e quem deve ser eliminado da vida pública. Embora dirigida a políticos e empresários, a punição recaiu, sobretudo, sobre um campo ideológico associado à defesa de pobres e negros, reforçando a lógica punitivista das elites.

Bega observa que figuras como Sergio Moro e Deltan Dallagnol forjaram um novo tipo de liderança sob o manto da legalidade e, no caso de Dallagnol, apoiada em igrejas evangélicas. O risco, afirma, é consolidar essa identidade local baseada na violência simbólica e no confronto, pela criação de bolhas de extremismo que corroem a democracia. “As estruturas criadas pelo lavajatismo continuam vivas na mente da maioria da população, reafirmando que a política é suja e que as instituições democráticas não protegem os cidadãos comuns.” •

Publicado na edição n° 1390 de CartaCapital, em 03 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Curitiba ou Salém?’

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