Pantagruélicas

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Érico Veríssimo, o escritor que pôs o churrasco na literatura

Na celebração dos 120 anos do nascimento do escritor, uma exposição em Porto Alegre mostra como a comida define os gaúchos 

Érico Veríssimo, o escritor que pôs o churrasco na literatura
Érico Veríssimo, o escritor que pôs o churrasco na literatura
(Fotos: Arquivo Pessoal/O Globo/Reprodução)
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Foi a cena em que o capitão Rodrigo Cambará chega à cidade de Santa Fé e adentra a venda de Nicolau que ficou na memória de Luis Fernando Veríssimo, que em 1947, aos 11 anos, assistiu ao seu pai, Érico, iniciar a escrita de O Tempo e o Vento, o romance épico sobre a formação do Rio Grande do Sul que levaria quinze anos para ser concluído.

Ao adentrar a venda, o desafio de Rodrigo Cambará veio rápido: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!”. Mas essa tensão, ponto de partida para amizade e amor no enredo, se quebra com o personagem se dizendo louco por linguiça, comida com alegria e farinha, e acompanhada por tragos de aguardente.

A cena despertou no filho, Luis Fernando, o gosto por escrever cenas gastronômicas. “Eu podia ver aquela linguiça com farinha. Foi a primeira vez que eu tive a sensação de que a palavra poderia reproduzir a comida, só que com o prazer literário”, contou Luis Fernando Veríssimo em 2013, durante um evento promovido pelo Estadão.

Fundada em 67, a Komka é uma das churrascarias mais tradicionais do Rio Grande do Sul.

A saga da família Terra e Cambará, que ganhou versões no cinema e na televisão, marcou milhares no Brasil e no exterior. A comida na obra é um espelho da história, ilustrando a jornada da escassez à fartura: da mesa rústica da missão — à base de charque e rapadura — ao requinte, passando por churrasco, feijoada, e a influência alemã em cucas ou tortas de maçãs.

O ano de 2025 marca os 120 anos de nascimento de Érico Veríssimo, nascido em 17 de dezembro de 1905, em Cruz Alta. No Espaço Força e Luz, no centro histórico de Porto Alegre, uma exposição, que vai até dezembro, reúne 47 artistas gaúchos para dar forma visual aos personagens (como Ana Terra e Capitão Rodrigo) que nasceram da caneta de Érico Veríssimo. Quem visita o prédio dedicado ao autor tem acesso, no último andar do prédio, ao acervo que expõe detalhes do seu processo criativo: o escritor datilografava em espaço duplo para correções à mão, desenhava as cidades e os personagens antes de descrevê-los em detalhes. Por exemplo, pode-se ver que, em “Incidente em Antares”, ele fez um mapa colorido com os principais endereços e locais onde seus personagens viveriam, antes mesmo de escrever o primeiro parágrafo da obra. No Teatro São Pedro, são oferecidos espetáculos com detalhes sobre personagens e as obras de Érico. 

O churrasco, prato típico gaúcho, está sempre presente nos livros. No volume 1 de Continente, Érico descreve: “Sobre o braseiro o churrasco chia, a graxa pinga nas brasas, o cheiro apetitoso espalha-se no ar”. Mais adiante, em outro trecho do livro, o churrasco era a palavra que mostra a completa recuperação de Rodrigo, ferido gravemente em um incidente durante a revolução Farroupilha. “O Capitão Cambará começara a melhorar a olhos vistos. Diziam que o moribundo se confessara e tomara a comunhão, e que o Corpo de Cristo lhe fora o melhor de todos os remédios. ‘Já fala, já senta na cama e já pediu um churrasco!”

O churrasco, portanto, é mais do que um prato; é um símbolo de vida, de cultura e de recuperação no Rio Grande do Sul. Esse mesmo sabor pode ser degustado em Porto Alegre em casas que mantêm viva a tradição da carne gaúcha. Onde, então, buscar a experiência desse churrasco que o Capitão Rodrigo tanto desejou? 

Em 1935, nos 100 anos da Revolução Farroupilha, o governador Flores da Cunha decidiu fazer um churrasco, um costume que naquela época era mais do interior do Estado. O pedido caiu para Antonio Aita. Ele, os quatro filhos e alguns amigos fizeram um banquete. Deu tão certo, que Antonio passou a oferecer carnes no seu restaurante Santo Antonio, no bairro Moinhos de Vento, uma das primeiras churrascarias do país. 

Duas das mais tradicionais churrascarias do Rio Grande do Sul e do Brasil, Komka e Barranco, têm décadas de história. Aberto em 1967 por Eduardo Komka, que também construiu o prédio no bairro de São Geraldo onde funciona até hoje, o restaurante hoje é gerenciado pelo filho Deco, que atende aos clientes na porta, sugere cortes de carne, presta atenção nas mesas e almoça com os funcionários quando o restaurante já está quase vazio. Os cuidados do dono, a seleção das carnes, a ótima carta de cervejas, a boa carta de vinhos são ingredientes de sucesso. 

Em uma esquina arborizada da movimentada Avenida Protásio Alves, no bairro Alto Petrópolis, o Barranco é outra parada para os carnívoros. A propaganda é que nem vegetarianos resistem às carnes do estabelecimento, aberto em 1969 e que oferece pratos à la carte. 

Seja na mesa rústica da saga dos Terra e Cambará, nas crônicas irônicas do filho Luis Fernando, ou no desejo primal de sobrevivência do Capitão Rodrigo, a comida — e, sobretudo, o churrasco — é o símbolo inabalável da identidade gaúcha. A visita a casas tradicionais oferece mais do que uma refeição: é uma forma de participar da história narrada por Érico.

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