Pantagruélicas

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A era dos vinhos de bilionário

A venda de vinhedos lendários como o francês Clos Rougeard a ricaços levanta um dilema: como preservar o caráter artesanal e o terroir diante da lógica do capital e da escala?

A era dos vinhos de bilionário
A era dos vinhos de bilionário
A venda provocou ondas de inquietação no mundo do vinho: seria possível que um grupo industrial guardasse intacta a essência artesanal de um rótulo de culto? (Foto: Divulgação)
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A aquisição de vinhedos históricos por grandes fortunas fora do universo da viticultura tem se tornado uma tendência global nos últimos anos.

Investidores, banqueiros e industriais, movidos pelo capital, mas também pela paixão pela boa mesa, pela bebida ou pelo status de preservar um ícone, estão transformando a paisagem vinícola. A incursão de figuras, inclusive brasileiras, como o banqueiro André Esteves, na Toscana, e a família Menin, no Douro, ilustra essa dinâmica.

A mudança levanta um desafio: como manter o caráter artesanal e a alma de uma propriedade lendária sem sucumbir à lógica da produção em escala e à mentalidade industrial? 

No coração desse dilema está o Clos Rougeard, um vinhedo mítico no Vale do Loire, berço de alguns dos tintos e brancos mais venerados por enófilos do mundo. O Loire, conhecido como o “Jardim da França”, é um vale sinuoso pontuado por cerca de 300 castelos — e entre eles repousa Saumur-Champigny, território de vinhas e de história.

Fundado no século XVII, o Clos Rougeard foi durante oito gerações uma fortaleza da viticultura orgânica, cultivada com devoção quase monástica pela família Foucault. Os irmãos Nady e Charly Foucault transformaram a propriedade num mito vivo, símbolo de fidelidade absoluta ao terroir. Sua reputação beirava o lendário: dizia-se que “há dois sóis que brilham no céu dos viticultores — um para todos, e outro apenas para os Foucaults.”

Mas em 2017, o sol mudou de órbita. Após a morte de Charly e divergências familiares, o Clos Rougeard foi vendido ao grupo industrial Eutopia Estates, dos irmãos Martin e Olivier Bouygues, por cerca de 14 milhões de euros — valor que comprou não apenas 10 hectares de terra, mas também um mito de quatro séculos.

A venda provocou ondas de inquietação no mundo do vinho: seria possível que um grupo industrial guardasse intacta a essência artesanal de um rótulo de culto?

O atual presidente da propriedade, Pierre Graffeuille, insiste que sim. “A ideia é preservar a tradição e os vinhos; nada mudou. A família Bouygues ama a comida e o vinho”, afirma ele — uma explicação que repete com frequência em eventos e degustações. “É um vinho que desperta paixões e que o envelhecimento faz muito bem.”

Graffeuille esteve recentemente no Brasil, apresentando jantares de antigas safras do Clos Rougeard em evento da importadora Clarets

O tempo e o clima parecem continuar a confirmar a vocação singular do Clos Rougeard. A safra de 2003, um ano de calor tórrido na França, demonstrou a capacidade de resistência e a qualidade inabalável dos vinhos da propriedade, mesmo diante do caos climático.  

Mais recentemente, garrafas da safra 2018, elaboradas logo após a aquisição, atestam que a filosofia e a precisão do terroir permanecem intactas. Naquele pedaço de terra em Saumur-Champigny, a lenda continua a se reescrever, provando que, até o momento, o sol ainda brilha de forma diferente. 

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