Justiça

Não existe narcoterrorismo no Brasil

É preciso dar o nome correto para enfrentar o grave problema do crime organizado

Não existe narcoterrorismo no Brasil
Não existe narcoterrorismo no Brasil
Cenário de guerra. Quando os policiais conseguiram passar pelas barricadas, o chefe do tráfico no Complexo de Israel já havia fugido. A população carioca segue acuada – Imagem: Pablo Porciuncula/AFP e Mauro Pimentel/AFP
Apoie Siga-nos no

Após a Operação Contenção, a mais letal da história da polícia brasileira, o governo do Rio de Janeiro, em coro com expoentes da ultradireita nacional, voltou a difundir o discurso do narcoterrorismo. Segundo essa narrativa, grupos como o Comando Vermelho não seriam apenas atores do crime organizado, mas agentes promotores de ‘terrorismo’.

O simbolismo da expressão é poderoso, pois agrega, como um ‘monstro-híbrido’, duas imagens relacionadas à violência, ao medo e à destruição. Tanto ‘terrorismo’ quanto ‘narcotráfico’ são ícones do ‘mal’ contemporâneo, o que faz da sua suposta articulação uma espécie de ‘super-vilão’.

Não é a primeira vez que o CV é acusado de ser narcoterrorista. Lembremos de um caso relacionado ao atual: nos dias que antecederam a invasão dos mesmos complexos da Penha e do Alemão, em novembro de 2010, a queima de ônibus e carros atribuída ao CV foi classificada pelo governo estadual como ações terroristas promovidas com o objetivo de evitar a instalação de bases das UPPs naquelas comunidades.

Grupos como o CV e as milícias são inegavelmente violentos e oprimem milhões de pessoas, mas não são ‘terroristas’

Hoje, mudanças no contexto internacional dão conotação ainda mais forte ao rótulo ‘narcoterrorismo’. Assim que assumiu o segundo mandato, em janeiro de 2025, Donald Trump assinou uma ordem executiva classificando como ‘terroristas’ grupos do crime organizado do México, de El Salvador e da Venezuela.

Organizações como o Cartel de Sinaloa (México), a Mara Salvatrucha (El Salvador) e o Tren de Aragua (Venezuela) já figuravam na lista de ‘organizações criminosas’, mas ao passarem para a relação de grupos terroristas ficaram sujeitas a medidas repressivas e retaliações muito mais severas. Tais medidas incluem a realização de operações militares na América Latina e a detenção de acusados por tempo indeterminado e sem garantias jurídicas.

A classificação de algum grupo ilegal como ‘terrorista’ ativa tanto construções simbólicas, quanto medidas repressivas que não estão no campo do Estado Democrático de Direito, mas na alçada da ‘segurança nacional’ – e, portanto, abrem caminho para que os Estados tomem todas as providências consideradas necessárias para se protegerem. Isso abre caminho para que direitos humanos sejam violados e que figuras jurídicas típicas de estados de exceção, como a suspensão de habeas corpus, sejam adotadas sem controle público e sem prazo para terminar.

Ainda em março de 2025, o governo Castro solicitou ao governo Trump que incluísse o CV na sua lista de grupos terroristas. Agora, após a Operação Contenção, o governo do RJ voltou a solicitar o mesmo, argumentando que a medida facilitaria ações contra o grupo.

O Comando Vermelho sequer consta da lista de ‘organizações criminosas transnacionais’ sancionadas pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Castro, no entanto, já pleiteia a sua inclusão diretamente na relação dos grupos terroristas.

Além da força simbólica e da legitimidade que uma inclusão pelos EUA produziria entre o eleitorado de (ultra)direita, a designação do CV como grupo terrorista facilitaria o discurso do governo fluminense de que a violência extrema seria inevitável para enfrentar esse ‘super-vilão’.

A sociedade brasileira em geral, e carioca em particular, exausta e amedrontada após tantas décadas de violência por parte de grupos criminosos, está propensa a aceitar como verdadeiro o selo de ‘narcoterrorismo’.

O problema é que não existe ‘narcoterrorismo’ no Brasil. Vejamos por quê.

Um pouco de história

O primeiro registro importante da expressão ‘narcoterrorismo’ é de 1982. Naquele ano, Fernando Balúnde Terry, então presidente do Peru, declarou que em seu país havia um novo problema de segurança nacional caracterizado pela união entre guerrilhas de esquerda e o tráfico de drogas. Naquele momento histórico, os dois fenômenos emergiam no Peru: de um lado, a guerrilha maoísta do Sendero Luminoso ganhava força; de outro, o boom do consumo de drogas nos EUA e na Europa transformou definitivamente a economia tradicional das folhas de coca numa indústria multimilionária para a produção em massa de cocaína.

Segundo o presidente, os guerrilheiros — identificados pelo Estado peruano como ‘terroristas’ — financiavam-se cobrando impostos dos produtores de coca e dos traficantes que refinavam a cocaína pura. Essa mesma lógica foi logo estendida para a Colômbia, onde guerrilhas como as FARC também sofreram a mesma acusação.

Abimael Guzmán, líder do Sendero Luminoso, cumpria prisão perpétua no Peru. Foto: Ernesto BENAVIDES/AFP

Em 1986, o presidente dos EUA Ronald Reagan assinou um documento secreto — a National Security Directive Decision n. 221 — instruindo seus militares e diplomatas a tratar o tráfico de drogas latino-americano como uma ameaça à segurança nacional estadunidense, principalmente pela suposta associação entre crime e guerrilhas de esquerda, o narcoterrorismo.

Com o final da Guerra Fria, na passagem dos anos 1980 para os 1990, esta caracterização foi reforçada pelos EUA e pelos países andinos, que passaram a considerar as guerrilhas ainda ativas como meros grupos criminosos, sem qualquer legitimidade político-ideológica.

Na mesma época, o termo ‘narcoterrorismo’ ainda ganhou uma outra acepção na Colômbia. Entre 1988 e 1991, narcotraficantes organizados ao redor de Pablo Escobar começaram a pressionar o Estado colombiano a se descomprometer do tratado de extradição que havia sido assinado com os EUA em 1979.

Por meio deste tratado, colombianos condenados na justiça estadunidense poderiam ser extraditados para cumprir pela nos EUA. A campanha liderada por Escobar levou à explosão de carros bomba, sequestros de figuras públicas e até a derrubada de uma avião comercial. O governo colombiano, apoiado pelos EUA, classificou o Cartel de Medellín de narcoterrorista e centrou seus esforços repressivos contra ele. O resultado foi a prisão ou assassinato dos principais líderes deste cartel, levando à sua dissolução entre 1992 e 1993.

Por fim, uma terceira versão para o termo ‘narcoterrorismo’ tomou forma após os atentados terroristas nos EUA realizados em 11 de setembro de 2001. Ao declarar ‘guerra ao terror’ e decidir pela invasão do Afeganistão, então comandado pelo Talibã, o governo de George W. Bush acusou o grupo fundamentalista de financiar-se promovendo o cultivo de papoula e a produção de heroína destinada ao mercado consumidor ocidental. Como o Talibã e a Al-Qada eram terroristas, o alegado financiamento com tráfico de heroína rendeu o rótulo de ‘narcoterrorismo’.

Nos três casos em que historicamente a expressão narcoterrorismo foi usada, estava em jogo o uso de táticas terroristas como recurso de violência visando a fins políticos. ‘Terrorismo’ não é uma ideologia, mas uma tática, ou seja, um conjunto de técnicas violentas de que lançam mão grupos com menor poder de fogo de que seus oponentes (geralmente, um Estado) de modo a provocar comoção, pânico e insegurança em uma população.

Terroristas sabem que seus atentados não podem derrotar militarmente seus inimigos poderosos, mas têm o potencial de os derrotar moral e politicamente, fazendo com que a pressão popular para fazer cessar a violência leve os governantes a aceitar as demandas do grupo que usa o terror como arma. Grupos como o Comando Vermelho não se encaixam em nenhuma das categorias acima.

De Falange a Comando

O Comando Vermelho surgiu, em 1979, como uma gangue prisional (chamada, à época de ‘falange’) que se organizou para evitar ser destruída por grupos rivais no Presídio da Ilha Grande, litoral fluminense. Aquele presídio foi usado pela ditadura brasileira para isolar homens condenados pela Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1969, uma normativa criada para punir severamente aqueles e aquelas que pegaram em armas para lutar contra o regime autoritário.

Como o Brasil não admitia internacionalmente ter presos políticos, a LSN não criminalizou a figura do ‘guerrilheiro’, mas as principais ações às quais se dedicavam para se financiar e para fazer ‘propaganda pela ação’: sequestro e roubo a bancos. O resultado foi que guerrilheiros e assaltantes e seqüestradores não-guerrilheiros foram reunidos na mesma galeria da Ilha Grande. Essa história é muito bem documentada em livros e filmes, indicando a origem do nome do futuro grupo criminoso e ajudando a compreender o discurso de cunho social e comunitário que foi a marca das primeiras gerações do Comando Vermelho.

Operação no Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho em 28 de outubro de 2025. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Essa época passou há tempos e o atual CV, articulado como uma federação de chefes que comandam territórios no estado do Rio de Janeiro — e nos últimos anos, também no Norte, Nordeste e Centro-Oeste — e que se dedica a uma ampla gama de atividades ilícitas, como a extorsão, a venda de serviços e tráfico de drogas.

Grupos como o CV e seus pares de origem no sistema prisional — como a ADA e o Terceiro Comando Puro —, governam de forma autoritária as populações dos territórios que controlam. Os vínculos dos seus membros com a comunidade em que atuam não têm mais o caráter de pertencimento que uma vez chegaram a possuir.

Hoje em dia, as facções assemelham-se às milícias, que tem origem em grupos de extermínio, com membros de forças de segurança e grande envolvimento com figuras do mundo político. São grupos inegavelmente violentos que oprimem milhões de pessoas que vivem no fogo cruzado entre disputas de facções, polícia e milícias, mas não são ‘terroristas’.

O Comando Vermelho e seus congêneres pouco agem fora dos territórios que controlam e quando o fazem — queimando ônibus ou fechando vias expressas — atuam de forma pontual e nos círculos exteriores das comunidades que ocupam, com o objetivo de causar transtornos temporários no ritmo de funcionamento da cidade ou para dificultar a realização de operações policiais.

Os atos violentos do CV fora dos limites das comunidades não têm objetivos políticos no sentido de intimidar sistematicamente o Estado, impedir que ele aja ou de impactar a sociedade carioca de modo que ela pressione o Estado a ceder às vontades da facção. O CV não demonstra ter capacidade de intimidar o Estado, impedindo-o de atuar na repressão. Se tivesse, uma operação da magnitude da Contenção não teria ocorrido e outras tantas que acontecem quase todas as semanas tampouco sucederiam-se na frequência em que ocorrem.

O CV é um grupo criminoso que prospera nas brechas deixadas pelos mercados ilegais altamente rentáveis e que interessam a agentes públicos e privados, como o tráfico de armas, o tráfico de drogas e formas variadas de lavagem e dinheiro, como os jogos de azar eletrônicos, roubo de carga, roubo de automóveis, combustível adulterado e modalidades de extorsão de negócios, comércio e atividades econômicas individuais.

Seu poder cresce e se difunde pelo Brasil pelo ambiente propício oferecido pelo sistema prisional superlotado e controlado pelas facções. As prisões brasileiras são o escritório, o centro de convocação e o espaço de reprodução do crime organizado; e o CV, grupo pioneiro deste modelo, é perito em utilizar a falida política prisional brasileira em proveito próprio.

Quando o governo Castro e seus aliados de ultradireita apelam à imagem do ‘narcoterrorismo’, a intenção é provocar medo, comoção, insegurança; portanto, motivações que partilham do próprio princípio das táticas terroristas. Não é difícil alcançar este resultado, pois a população que mais sofre exige, com toda razão, uma solução. Os resultados das pesquisas de opinião realizadas após a Operação Contenção explicitam como a população pobre, negra e de favelada não aguenta mais, preferindo a violência letal do Estado à violência letal do crime organizado.

As soluções possíveis

A retórica do narcoterrorismo, no entanto, não serve à solução do problema da criminalidade organizada e do seu controle territorial. Ela funciona, somente, para justificar a continuidade, ou até mesmo, a intensificação das operações policiais letais, sem que sejam acompanhadas de políticas públicas que corroam as bases do crime organizado.

Como tenho sistematicamente criticado a falha histórica do campo democrático em oferecer propostas concretas, realistas e eficientes para combater o crime organizado sem abrir mão do compromisso com a dignidade humana, termino essa reflexão com algumas indicações.

1) Captura de Lideranças com operações militarizadas cirúrgicas: ações de alta complexidade, com grupos de elite, uso de inteligência e de meios sofisticados para ‘extrair’ das comunidades os líderes do crime organizado. Uma operação, como a Contenção, que deixe escapar o líder principal e mata 130 pessoas não pode ser considerada um sucesso operacional, se o que se pretende é fragilizar verdadeiramente a facção.

2) Reforma imediata do sistema prisional: construção ou adaptação de unidades de segurança máxima, com regime disciplinar diferenciado, para isolar as lideranças do crime organizado. Transitar presos de baixa periculosidade ou de baixo escalão das facções para regime penal alternativo, com intensiva capacitação educacional e profissional. Mobilizar empresas e sociedade civil organizada, por meio de incentivos fiscais, para a formação e empregabilidade de ex-presos de baixa periculosidade. Diminuir a população prisional e reestruturar o sistema penitenciário visa ao enfraquecimento dos quartéis-generais do crime organizado.

3) Reforço do controle de armas: fortalecimento do combate ao tráfico de armas, com mobilização do sistema nacional de segurança pública e com apoio do Ministério da Defesa em zona de fronteira. Revisão universal das licenças para clubes de tiro, de tiro esportivo, de caça e de colecionadores para evitar desvios de armas para o crime organizado.

4) Articulação Nacional para combate ao crime organizado: coordenação por parte do Ministério da Justiça e da Segurança Pública de ações integradas entre governo federal, estados e municípios para combater o crime organizado, pois suas atividades não respeitam fronteiras estaduais. Foco nas ações contra o centro financeiro do crime organizado e suas operações de lavagem de dinheiro.

5) Aprovação imediata da PEC da Segurança Pública: atualização do texto constitucional para dar respostas às atuais demandas e necessidades para combater o crime organizado no Brasil.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo