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Donald Trump escala ameaça de guerra contra a Venezuela, com mobilização de tropas e aval para a CIA depor Nicolás Maduro

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Gratificação faroeste. Marco Rubio, secretário de Estado de Trump, anunciou uma recompensa de 50 milhões de dólares pela captura do líder venezuelano – Imagem: Mandel Ngan/AFP e Zurimar Campos/Presidência da Venezuela/AFP
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Nos últimos dias, os Estados Unidos mobilizaram 10 mil militares, além de dezenas de navios de guerra, caças, bombardeiros, cargueiros e drones – toda a parafernália com a qual o presidente Donald Trump ameaça invadir a Venezuela. Pelo menos 30 tripulantes de embarcações foram mortos no Mar do Caribe, em ataques realizados pelas Forças Armadas norte-americanas. Enquanto isso, aviões de reconhecimento e helicópteros já operam a menos de 200 quilômetros da costa venezuelana.

“Estamos, certamente, olhando para a terra agora, porque já temos o mar sob controle”, afirmou Trump em 15 de outubro, sinalizando o próximo passo de uma intervenção delegada à CIA, a agência de inteligência norte-americana. De acordo com documentos confidenciais revelados pelo New York Times, o presidente dos EUA solicitou ao chefe do serviço secreto, John Ratcliffe, a elaboração de um plano para depor Nicolás Maduro. O pedido foi entregue ao interlocutor certo: desde que assumiu o comando da CIA, ­Ratcliffe prometera transformar a agência em uma força capaz de “ir aonde ninguém mais vai e fazer o que ninguém mais faz”.

Os EUA não adotavam uma postura tão abertamente hostil e intervencionista contra um país da América Latina havia décadas. No governo anterior, do democrata Joe Biden, Washington buscava até se reposicionar como fiador da democracia diante dos arroubos autoritários da nova extrema-direita, como demonstrou ao dar respaldo ao sistema eleitoral brasileiro, após as tentativas de Jair Bolsonaro de deslegitimá-lo.

Ao menos 10 mil militares norte-americanos foram enviados ao Caribe

A nova ofensiva dos EUA reedita, sob nova roupagem, o mesmo espírito desestabilizador da Guerra Fria. A estratégia ­atual consiste em rotular cartéis latino-americanos ligados ao narcotráfico como organizações terroristas e, na sequência, associar governos de esquerda à conivência com essas facções, abrindo caminho para que também sejam tratados como alvo.

É como se a guerra às drogas dos anos 1990 e 2000 estivesse sendo reeditada em versão turbinada, transformando a América Latina em um novo Oriente Médio, onde intervenções militares servem para promover mudanças de regime. Se, antes, os EUA cooperavam com governos como os do México e da Colômbia no combate aos cartéis, agora a Casa Branca acusa líderes latino-americanos, como o venezuelano Nicolás Maduro e o colombiano Gustavo Petro, de integrar essas organizações criminosas – o que, sob essa lógica, justificaria o uso da força contra os próprios chefes de Estado.

Trump passou a afirmar que cartéis como o Tren de Aragua estão travando uma “guerra irregular” contra os EUA. Embora os próprios serviços de inteligência norte-americanos tenham descartado a hipótese de que Maduro lidere essas organizações, o presidente e seu secretário de Estado, Marco Rubio, redobraram a aposta nessa tese, oferecendo uma recompensa de 50 milhões de dólares pela captura do líder venezuelano.

As ameaças militares contra a Venezuela não constam apenas em documentos vazados da CIA. Elas agora aparecem em posts de membros do governo norte-americano na internet e até no discurso que o presidente dos EUA fez no púlpito da Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, no mês passado. Raramente o mundo viu uma intenção tão abertamente golpista contra um país latino-americano ser proclamada de forma tão clara.

Exército sem farda. O governo tem oferecido treinamento militar a cidadãos comuns – Imagem: Pedro Mattey/AFP

“As ameaças são críveis”, disse a ­CartaCapital o sociólogo e economista venezuelano Luís Salas Rodríguez, que foi ministro de Maduro em 2016. “Há um emprego desproporcional de forças norte-americanas ao redor da Venezuela, com um argumento extravagante de luta contra o narcotráfico. Mas, se quisessem atacar os criminosos, não seria necessário esse volume militar, muito menos na costa da Venezuela, onde o fluxo de drogas é ínfimo em comparação com outras áreas.”

Salas diz que, dentro da Venezuela, há quem acredite na hipótese de uma “intervenção cirúrgica e pontual” para tirar Maduro do poder. Mas ele lembra que essa mesma crença existia em relação à aplicação de sanções: “Dizia-se que seria algo dirigido exclusivamente a alguns integrantes do governo, mas, no final, essas sanções recaíram sobre todo o país”.

A escalada nas ameaças ganhou ainda mais força depois que a principal figura da oposição a Maduro, María Corina ­Machado, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Ela mesma fez questão de dedicar o prêmio a Trump, dizendo que o presidente norte-americano vai ajudar a “transformar a Venezuela de um centro do crime em um centro de energia que traga prosperidade e segurança – primeiro para o nosso povo, acima de tudo, mas também para o restante das pessoas do Ocidente”.

Não é o que países como Líbia, Iraque, Afeganistão e Síria demonstram. Todos eles sofreram intervenções militares dos EUA, sob pretexto de defenestrar líderes autoritários e erigir modelos ocidentais de democracia. No entanto, o resultado foi o esfacelamento desses países, nas mãos de facções rivais armadas. “Qualquer tipo de invasão seria catastrófico. O mundo já está suficientemente convencido de que esse tipo de intervenção não traz nada de bom. As evidências são muitas”, afirma Salas.

A preocupação expressa por ele encontra eco no discurso do presidente brasileiro. “Intervenções estrangeiras podem causar danos maiores do que se pretende evitar”, disse Lula, durante uma recepção a embaixadores estrangeiros, na segunda-feira 20, no Palácio do Itamaraty.

O Brasil faz fronteira com a ­Venezuela, pelos estados do Amazonas e Roraima. Qualquer conflito no país vizinho – seja protagonizado por forças norte-americanas, seja por disputas internas – provocaria reflexos do lado brasileiro, tanto pela questão migratória quanto pelo risco de pulverização da presença de atores armados na região. “Não interessa ao País ter, tão próximo a uma fronteira já marcada por diversas problemáticas, uma guerra que geraria ainda mais instabilidade”, avalia Carolina Silva Pedroso, pesquisadora da questão venezuelana vinculada ao curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Em resposta, Maduro mobilizou tanto as Forças Armadas quanto as milícias formadas por civis treinados nos últimos anos. Além disso, a Venezuela busca solidariedade – ainda que apenas retórica – da vizinha Colômbia, que também sofreu ameaças de Trump, assim como da Rússia e da China, seus principais parceiros econômicos e fornecedores militares.

Maduro mobilizou militares e milícias civis para resistir a eventual invasão

“A assimetria de forças pode, por um lado, dar a impressão de uma vantagem estadunidense no caso de um confronto com a Venezuela. Por outro, a história mostra que nem sempre o poderio bélico é determinante para uma incursão bem-sucedida”, observa Pedroso. “Maduro parece saber disso e está disposto a armar militares e civis, lado a lado, para defender a soberania do país. Novamente, os exemplos históricos demonstram que as perspectivas humanitárias desse tipo de enfrentamento são tenebrosas.”

Durante anos, Lula manteve uma porta aberta pela qual Maduro poderia não apenas dialogar, mas também construir uma saída negociada. Só que o próprio governo venezuelano ameaçou jogar por terra esse espaço de distensão quando passou a tratar Lula como um traidor. Em 2024, o procurador-geral do Ministério Público da Venezuela, Tarek William Saab, chegou a dizer que o presidente brasileiro tinha sido cooptado pela CIA. Mais tarde, a chancelaria, em Caracas, se pronunciou, dizendo que a fala de Saab não reflete uma posição oficial do governo Maduro.

As relações entre Brasília e Caracas esfriaram. Outros presidentes e líderes de esquerda da América do Sul, como o presidente chileno, Gabriel Boric, e o ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica passaram a criticar Maduro, cuja gestão autoritária e populista à frente do governo da Venezuela passou a conflitar com a defesa dos princípios democráticos.

Para líderes como Lula, tornou-se cada vez mais difícil criticar o assédio golpista de Bolsonaro no Brasil e, ao mesmo tempo, defender a democracia interna, enquanto Maduro, aliado do mesmo campo ideológico, enfrenta acusações semelhantes na Venezuela. Ainda assim, qualquer solução por meio da força – especialmente se imposta pelos EUA – será rejeitada pelo Brasil, que deve aproveitar o atual momento de diálogo com Trump para tentar desarmar essa crise. •

Publicado na edição n° 1385 de CartaCapital, em 29 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pavio aceso’

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