


Opinião
‘Congresso inimigo do povo’ e o risco da crítica vazia
O novo bordão reflete um sentimento real, mas acaba poupando os blocos de poder que realmente impõem derrotas à população


A palavra de ordem “Congresso inimigo do povo” voltou a circular entre setores da esquerda brasileira. A frase expressa uma indignação legítima diante de retrocessos legislativos, mas carrega um problema grave: transforma o Parlamento em inimigo abstrato, apagando as forças reais que o dominam. E reproduz, ainda que involuntariamente, o mesmo moralismo antipolítico da extrema-direita. Dissolve-se, assim, a responsabilidade política concreta de quem, de fato, conduz o retrocesso.
Assim como o “Fora Todos” de junho de 2013, que abriu caminho para o antipetismo, o golpe jurídico-parlamentar de 2026 e, consequentemente, o bolsonarismo, o novo bordão reflete um sentimento real, mas despolitiza a crítica. Alivia a raiva, mas deseduca. Faz barulho, mas não esclarece. E, ao não nomear os responsáveis, acaba escondendo os blocos de poder que realmente impõem derrotas ao povo.
A esquerda que reduz o Congresso a um bloco monolítico comete o mesmo erro da direita antipolítica: nega o conflito interno e trata a política como lama indistinta. Se é assim, fecha o Congresso. O problema não é o Congresso “em si”, mas a hegemonia conservadora e empresarial que o ocupa.
A chamada “PEC da Blindagem” tentou restringir a possibilidade de prisão e criar voto secreto para autorizar investigações de deputados e senadores. Só não avançou mais porque a mobilização social impediu. Mas a votação revelou algo nítido: há uma maioria disposta a se autoproteger do controle público. Diante disso, a crítica genérica “Congresso inimigo” dilui a responsabilidade de quem votou a favor.
Logo depois, o PL da Anistia buscou perdoar os envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro. Sob o falso discurso da “pacificação”, o projeto tenta garantir impunidade a quem atentou contra o Estado Democrático de Direito. A aprovação do regime de urgência mostrou que o golpismo não é resquício do passado, mas uma força viva no Legislativo, organizada e com base social.
Por fim, a MP da “taxação BBB” (bancos, bets e bilionários) caducou. A medida sequer foi votada em plenário devido à forte pressão de setores alinhados ao bolsonarismo, com ajuda do governador Tarcísio de Freitas e do lobby dos super-ricos. A medida permitiria a arrecadação de bilhões por ano e reduzir isenções injustificadas, mas a pressão do setor financeiro venceu. Foi a vitória silenciosa do andar de cima sobre o interesse público.
Outro exemplo simbólico dessa disputa é a reforma do Imposto de Renda, um projeto de ampla aprovação popular que demorou meses para avançar no Congresso, mesmo estando pronto para votação desde o fim do primeiro semestre. A proposta – que aumenta a tributação sobre quem ganha mais de 1,2 milhão de reais por ano – enfrentou forte resistência da extrema-direita, do bolsonarismo e dos super-ricos, que pressionaram abertamente contra qualquer medida que mexesse no topo da pirâmide.
O texto só foi finalmente aprovado na Câmara após as manifestações de 21 de setembro, quando as ruas deixaram claro que havia um consenso popular em torno de tributar o 1% mais rico do país e aliviar a base da população trabalhadora.
O Congresso não é “inimigo do povo”. Ele é campo de disputa capturado por interesses poderosos. E nomear esses interesses é o primeiro passo para enfrentá-los. E os debates recentes mostram também o poder das ruas quando o povo se organiza: sem pressão social, o Parlamento se acomoda aos interesses do topo.
O discurso antiparlamentar, mesmo vindo da esquerda, fortalece o discurso fascista de que “a política não presta” e “é tudo igual”. A linguagem importa, e muito. A linha de que a política institucional “não presta” é o cimento do autoritarismo. Foi com ele que o bolsonarismo destruiu pontes democráticas e capturou o imaginário popular. Quando a esquerda repete esse coro, enfraquece as próprias trincheiras que precisa ocupar para mudar o país.
A radicalidade não está no “slogan” da indignação, mas na precisão da crítica – indo à raiz do problema – e na capacidade de, com força social organizada, transformar mentes e corações e impulsionar o Estado a fazer política pública para o povo. O verdadeiro desafio é construir consciência social, denunciar cada voto, expor cada bancada e educar o povo sobre o funcionamento do poder.
O Congresso é reflexo das forças que o compõem. Há inimigos, sim. Mas eles têm partidos, financiadores e projetos claros. Confundi-los todos num mesmo rótulo é abandonar a disputa política e entregar o terreno à extrema-direita. É preciso identificar sujeitos, interesses e estruturas. Clareza na estratégia para não errar na tática.
A tarefa da esquerda, neste momento histórico, é outra: construir força social politizada para transformar o Parlamento, o Executivo e o Judiciário em campo de luta popular, e não em bode expiatório moral. Porque o verdadeiro radicalismo, no Brasil de 2025, não é destruir o poder. É ocupá-lo e derrotar a verdadeira inimiga do povo brasileiro: a extrema-direita.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.