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Uma questão de classe

A elite local se insurge e move batalha jurídica contra curso de Medicina para assentados e quilombolas

Uma questão de classe
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Inclusão. Um dos objetivos é garantir a formação de médicos em regiões carentes do interior, explica o reitor Alfredo Gomes – Imagem: Arquivo/Ministério da Saúde
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O processo seletivo para um curso de Medicina, voltado exclusivamente para assentados e quilombolas, transformou-se em uma batalha jurídica em Pernambuco, alimentada por fake news e ataques ao MST. Entidades médicas e alguns vereadores do Recife contestam a reserva de 80 vagas para beneficiários do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), fruto de uma parceria entre o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Em resposta a uma ação apresentada pelo vereador Tadeu Calheiros, do MDB, a 9ª Vara da Justiça Federal no estado concedeu, em 30 de setembro, uma liminar suspendendo o certame – decisão derrubada em 7 de outubro pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que reconheceu a legalidade da seleção e autorizou a retomada do calendário previsto no edital. O imbróglio está, porém, longe do fim. Na quarta-feira 8, o juiz Ubiratan Maurício, o mesmo do recurso apresentado por Calheiros, suspendeu novamente o concurso, desta vez baseado na representação do parlamentar bolsonarista Thiago Medina.

O Pronera foi criado em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e, nesses 27 anos, promoveu mais de 500 cursos, qualificando quase 200 mil alunos oriundos de assentamentos e quilombos, todos cadastrados e reconhecidos pelo Incra. Esta é a primeira vez que o programa oferece uma graduação em Medicina, área historicamente elitizada. “Sabíamos que haveria resistência. Isso ocorre sempre que há oferta de carreiras normalmente acessíveis apenas a setores abastados da sociedade. Estamos entrando numa seara profundamente concentrada em privilégios”, ressalta Clarice Santos, coordenadora nacional do Pronera, acrescentando que já houve, no passado, contestações em cursos de Agronomia, Medicina Veterinária e Direito, todas derrubadas pelo Judiciário.

“Temos todo um arcabouço legal que dá sustentação ao programa, que vai desde a portaria que o criou até a lei aprovada pelo Congresso e o decreto que o regulamenta”, afirma Santos. Mais de mil candidatos se inscreveram no processo seletivo, e a expectativa é de que ao menos metade atenda aos critérios do edital e tenha a participação homologada pelo Incra. Pelo cronograma, avalizado pelo TRF da 5ª Região, o recrutamento deve ser concluí­do até o fim de outubro, com início das aulas previsto para novembro. Além da análise documental, a seleção inclui uma prova presencial de redação e avaliação do histórico escolar dos candidatos aptos – pontos que motivaram três ações públicas na Justiça Federal, uma denúncia no Tribunal de Contas da União (TCU) e uma ameaça do ex-ministro da Educação Mendonça Filho, que promete levar o caso ao Supremo Tribunal Federal.

O juiz Ubiratan Maurício voltou a suspender o processo seletivo

Na liminar concedida ao vereador Tadeu Calheiros, o juiz federal Ubiratan de Couto Maurício acolheu os argumentos de que o certame “afronta os princípios da isonomia e razoabilidade administrativa”, conforme previsto na Constituição Federal. “Estamos entrando com um agravo para suspender a decisão do ­TRF–5 e, em paralelo, vamos seguir até o fim com a ação na Justiça Federal para tentar a nulidade do edital. O mérito ainda será analisado pela primeira instância, e acreditamos que o julgamento será favorável, como ocorreu na liminar”, afirma Calheiros. Ele ressalta que não é contra ações afirmativas, mas alega que a iniciativa tem viés “ideológico” e visa atender à base do governo Lula. Cabe destacar que todas as formações oferecidas pelo Pronera são financiadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, não pelo da Educação, e são voltadas exclusivamente a assentados e quilombolas. Além disso, os alunos seguirão a mesma grade curricular de um curso de Medicina tradicional, sem prejuízo à qualidade da formação.

“Estamos vendo uma apropriação do processo de inclusão nas universidades como uma pauta política muito forte. Quando as formações são em licenciaturas ou outras áreas de menor prestígio social e econômico, não há questionamentos. Dói muito ter de reconhecer, enquanto nação, que ainda temos pela frente um longo trabalho civilizador”, lamenta Dilson Cavalcanti, diretor do Campus Agreste da UFPE, onde a graduação será oferecida. “A universidade é para todos, o conhecimento é para todos, e defendemos uma instituição inclusiva, democrática, que contribua para o fortalecimento do nosso povo, sobretudo daqueles que historicamente vivem em situações de assimetria e desigualdade estrutural.”

Alfredo Gomes, reitor da UFPE, também lamenta a reação de entidades de classe, como o Conselho de Medicina de Pernambuco, o Sindicato dos Médicos e a Academia Pernambucana de Medicina, além dos vereadores que, em nenhum momento, procuraram a universidade para obter informações sobre a proposta. Ele destaca o caráter pioneiro da UFPE ao ofertar a graduação em Medicina voltada a assentados e quilombolas. “Vínhamos construindo essa parceria desde 2023, uma iniciativa corajosa, por se tratar de uma área que ainda não havia sido contemplada. Sabemos que é um campo de disputa, marcado por fortes privilégios sociais”, afirma. “Inicialmente, chamei essa judicialização de lacração, porque o pessoal vai à Justiça e às mídias para se promover em cima de uma pauta séria, bem fundamentada e com profundo impacto social. Vamos formar médicos voltados para o campo, para as comunidades rurais e para o interior.”

Além da decisão do TRF da 5ª Região, o Ministério Público Federal publicou parecer reconhecendo a legalidade da iniciativa e diversas entidades científicas, como a Fiocruz, emitiram notas de apoio ao Pronera e à UFPE. “As universidades têm autonomia para criar turmas e implementar qualquer formação, e me orgulho muito de ter trabalhado com tantos parceiros na concretização desse processo. Estamos firmes na defesa dessa proposta, que, por um lado, vai garantir a formação de médicos para regiões carentes do interior e, por outro, promove uma reparação histórica, já que não há no Brasil uma política dessa natureza”, finaliza Gomes. •

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma questão de classe’

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