

Opinião
Lula tocou na ferida
A crise não é da democracia, mas da política — e, mais precisamente, da esquerda


Paralelamente à 80ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Lula participou de encontro com os presidentes de Chile, Colômbia, Espanha e Uruguai, para debater o multilateralismo e a urgente defesa da democracia, esta utopia que entre nós Otávio Mangabeira, ao final da Segunda Guerra Mundial, chamou de “florzinha frágil que precisa de ser cuidada todos os dias”. Pois a história registra o alto preço político e humano cobrado às sociedades desatentas a seu destino.
De fato, a democracia, mesmo esta que aí está, de raiz liberal-ocidental, largamente cingida ao protocolo do voto, jamais esteve tão ameaçada como agora, inclusive entre nós, a lembrar os tempos da emergência do nazifascismo na Europa, nas primeiras décadas do século passado.
Hoje, a ameaça é tão ou ainda mais assustadora quando seu epicentro, projetando-se sobre o mundo, está nos EUA, ainda poderoso conquanto em relativo declínio, por isso mesmo imperialista mais do que nunca, e belicoso como jamais se conheceram uma sociedade e um país na história moderna.
Coube ao nosso presidente a coragem da autocrítica, o melhor método até hoje conhecido para a correção de desvios. O processo histórico não é obra dos deuses, eis que é gestado como labirinto de bilro, peça por peça, bordado por bordado, pela ação do ser humano. Se o indivíduo não escolhe a realidade concreta na qual lhe cumpre atuar, como sujeito, ele se escolhe nela, e nesta escolha define o seu papel. Diante das circunstâncias adversas, nos cabe vencê-las; diante da correlação de forças adversa, nos cabe mudá-las.
Daí a relevância da autocrítica, quando ainda é possível salvar-se dos erros.
O fundamento da autocrítica é a consciência de que nada na história decorre do acaso, e que, nas derrotas ou no avanço do adversário, na luta política como na guerra, um fator relevante é o erro cometido pelo vencido, que, se dele não tiver consciência, voltará a repeti-lo, para novas derrotas colher.
A direita comumente caminha nos calcanhares dos erros da esquerda.
No desdobramento do fracasso do projeto liberal da República de Weimar, na autofagia das disputas entre sociais-democratas e comunistas, cresceu a onda fascista. Hindenburg capitula entregando o poder a Hitler. Na Itália, a incompetência do governo de Luigi Facta se completa na covardia do rei Vítor Emanuel III, e abre o caminho para a tomada do poder por Mussolini.
Esses dois processos similares de queda e tomada de poder são destacados pelo caráter emblemático, mas — por óbvio — não encerram a história toda, frequentada por tantos exemplos e tragédias de igual significado, inclusive na história presente, excepcionalmente rica no registro da direita caminhando nas pegadas de governos de centro-esquerda e esquerda.
Alguns poucos registros destacados da vida contemporânea: na Itália, a sucessão de Romano Prodi por Silvio Berlusconi; no Chile, a troca de Michelle Bachelet por Sebastián Piñera; no México, quando a centro-esquerda de Ernesto Zedillo entrega o governo à direita de Vicente Fox. Na Argentina, o peronismo de centro-esquerda é sucedido pela direita neoliberal de Mauricio Macri, e depois pelo neofascismo bufônico de Javier Milei. E por aí vai.
A lição é simples: a direita não tem história própria.
Lula põe o guiso no pescoço do gato:
“Muitas vezes ganhamos as eleições com discurso de esquerda, e quando começamos a governar pensamos muito mais nos interesses dos nossos inimigos do que nos dos nossos amigos. Muitas vezes, a gente governa dando resposta à cobrança do mercado, à necessidade de contentar os adversários, e os nossos eleitores são considerados por nós sectários e radicais. Esse é o fracasso da democracia”.
Trata-se de autocrítica, porque Lula fala dos três, quase quatro governos de centro-esquerda que tivemos até o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016; fala dos seus próprios mandatos, inclusive do atual. Fala dos riscos do desalento político das grandes massas diante do fracasso das esquerdas e dos governos de centro-esquerda, desafiados a oferecer resposta à crise do capitalismo e ao fracasso do neoliberalismo renitente, abrindo espaço para o proselitismo da direita — seja leiga, seja religiosa — canalizar a indignação social.
Mas não revela o fracasso da democracia, pois mais diz do quadro em que se desenvolve nossa experiência de democracia — fragilíssima —, em país incrustado no capitalismo dependente do Sul Global. Essas circunstâncias têm levado as esquerdas a admitir, não só aqui, a sobrevalência da tática sobre a estratégia, donde a prioridade da conquista eleitoral do governo sobre a conquista do poder. Daí a renúncia à organização popular e o recesso da batalha ideológica.
Concessões como as das eleições de 2022, historicamente necessárias, mas que, no caso concreto, para nos livrar do bolsonarismo, nos impuseram composição com setores da direita, e com eles governar: “Lula” — diagnostica com precisão o companheiro João Pedro Stédile, do MST — “foi eleito por uma frente ampla para barrar a extrema-direita, mas essa aliança heterogênea dificulta a implementação de reformas estruturais”
Mesmo buscando a conciliação, o governo permanece minoritário no Congresso, malvisto na caserna e antagonizado na Faria Lima. E segue ainda sem programa claro, sem projeto claro, porque tanto uma coisa quanto outra se tornam inalcançáveis quando não há, nem pode haver, unidade programática em arranjo que é uma miscelânea ideológica.
Não se trata, porém, de fenômeno de nossos dias. É pertinente lembrar que o chefe do Banco Central, nos dois primeiros mandatos de Lula, foi o banqueiro Henrique Meirelles, ex-presidente mundial do Bank of Boston. E hoje sabemos que não há qualquer distinção entre Gustavo Franco e Armínio Fraga e Campos Neto (agora no Nubank, pouco após deixar o BC) ou Galípolo, no comando da instituição que se jacta de sua autonomia em relação ao povo.
Isto porque medra larga distância entre a conquista do governo e a conquista, de fato, do poder.
É o caso presente assinalado por Lula. Muitas vezes, não podendo realizar o governo de nossos programas, a força das contingências nos leva a seguir a plataforma dos nossos adversários, para simplesmente nos conservarmos no governo. Assim é que a direita aqui instalada, podendo perder uma ou outra eleição, jamais perde o mando.
É com ela que governamos, ou tentamos governar, correndo o risco de não sermos compreendidos pelos nossos militantes, justamente perplexos ou mesmo indignados — e por isso desmobilizados. Demonstram-no nossas recentes dificuldades eleitorais, a popularidade do presidente que custa a subir e os temores relativos ao pleito de 2026, nada obstante a crise moral e política que enxovalha a direita.
Nesse contexto, emerge a crise de representação, oferecendo terreno fértil para a exploração populista reacionária. A questão central deixa de ser as projeções eleitorais, para radicar-se na necessidade de compreender — e, compreendendo, combatê-lo — o avanço da direita em todas as camadas sociais, mas, em especial, junto às camadas mais pobres da sociedade.
A política neoliberal, perseguidora do austericídio, não sofreu abalos relevantes desde FHC. Adotamos o mantra do “ajuste fiscal”, que se impõe sem se justificar, e se impõe impedindo o desenvolvimento do país — o único caminho de que as nações dispõem para enfrentar a injustiça social.
Há pouco, enquanto se anunciava a elevação do bloqueio de despesas no Orçamento deste ano (aumento de R$ 1,4 bilhão em relação ao inicialmente previsto), o secretário-executivo do Ministério da Fazenda pedia apoio congressual para que o governo possa manter seu compromisso com o déficit zero e o superávit primário. Por quê? De quem é essa agenda? Decerto não é da massa que clama por mais e melhores serviços públicos, empregos com carteira assinada, salários dignos e políticas sociais robustas.
O cerne de nossos problemas continua sendo a política de juros, que desserve ao país e só aproveita ao rentismo, sob cujo controle está, como sempre esteve, o Banco Central, que alimenta a inflação a título de combatê-la. A elevada taxa de juros, que reduz a poupança nacional e, consequentemente, o volume de investimentos da população, das empresas e do Estado, acentua a vulnerabilidade da economia brasileira. A menor formação de poupança interna limita a circulação de capital e restringe a capacidade de financiar o crescimento econômico.
Diante disso, cresce a necessidade de o país recorrer a capitais externos, o que eleva a dívida pública e privada e, por consequência, exerce pressões adicionais sobre a inflação e a estabilidade macroeconômica. É o círculo vicioso que faz a riqueza do sistema financeiro e a pobreza do povo. É a política ditada pelos interesses do grande capital, que não precisa disputar eleições, pois as ganha todas, independentemente da voz das urnas.
O projeto das transformações estruturais, que deve ser o objeto dos governos de esquerda e de centro-esquerda, não chega sequer ao reformismo, porque renunciamos a todas as reformas — e não só à reforma agrária, que devemos ao país há mais de cem anos. As contingências históricas nos impuseram a defesa da ordem: defendemos a ordem legal, defendemos as instituições, defendemos a legalidade democrática. O povo aflito, esmagado pelo sistema, não mais nos vê como seu aríete, e receia nossa liderança.
A crise, portanto, não é da democracia, mas da política — e, mais precisamente, da esquerda.
Nesse contexto, a autocrítica de Lula é peça da maior importância, fundamental como tomada de posição. Didática, deve ser lida pelas lideranças do PT e de todas as organizações de esquerda, na boa expectativa de que governo e partidos progressistas estejam decididos e politicamente preparados para rever seus projetos e ações.
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Diplomacia genocida I — Acaba de ser anunciado um oximoro, qual seja, um plano de paz trumpista, na realidade uma proposta para a rendição incondicional dos palestinos; eles que, ao longo de décadas, têm impressionado seus algozes pela determinação em resistir e existir. O plano (evidentemente formulado sem consulta à resistência palestina) é, na realidade, um puro embuste, uma forma de validar a “solução final” já acordada entre Trump e Netanyahu, com apoio de países árabes, europeus e de maioria muçulmana (como Indonésia e Paquistão), aquiescência de Rússia e China, e “satisfação” da chefia da ONU. Para cúmulo, a “solução” recebe o aplauso precipitado do Brasil e mesmo da Autoridade Palestina, que o projeto promete escantear.
Diplomacia genocida II — Propositalmente vago em relação às obrigações da nação ocupante, o plano é apresentado na forma absurda de um ultimato: segundo o autocrata norte-americano — cujo país rejeitou todas as propostas de cessar-fogo levadas ao CSONU, inclusive uma brasileira, e cuja família sonha em fazer bons negócios no território roubado —, o Hamas tem até 4 dias para aceitar a proposta; do contrário, diz ele, “será um fim muito triste”. A extrema-direita sionista, por sua vez, reage à ideia com desagrado, ansiosa por que a limpeza étnica se faça de uma vez, e não a prestações.
A cereja do bolo — Como se fosse preciso explicitar o caráter colonial do “plano de paz” dos países que, juntos, estão levando a cabo a fase atual do holocausto palestino, a proposta trumpista prevê a nomeação de uma espécie de “vice-rei” para administrar o território invadido, após a capitulação que se busca, e ventila o nome de um britânico para exercer a função. E não um britânico qualquer, mas ninguém menos que o ex-premiê Tony Blair, criminoso de guerra e traidor do trabalhismo inglês, que, ao lado de George W. Bush, levou à morte milhares de iraquianos (ao invadir o país com o fraudulento pretexto das “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein), e tem auferido lucros consideráveis, desde então, como “enviado especial” ao chamado Oriente Médio.
A resistência é civil – A espantosa covardia da dita “comunidade internacional” em face do genocídio palestino (que assume o caráter de cumplicidade com o crime) contrasta com os exemplos de solidariedade e bravura apresentados pela sociedade civil. Na última quarta-feira (1º/10), integrantes da Flotilha Global Sumud, dentre eles 15 brasileiros, foram sequestrados em águas internacionais pelo exército de Israel, que enxerga como grave ameaça a oferta de comida, medicamentos e apoio ao povo que pretende exterminar. O sequestro já levou milhares de pessoas às ruas em pelo menos 120 cidades, exigindo a imediata libertação dos reféns pelo enclave sionista.
Justiça tributária no horizonte — Merece celebração a proposta, aprovada ontem (1º/10) na Câmara dos Deputados e encaminhada ao Senado, que amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda para até R$ 5 mil e institui um imposto mínimo efetivo sobre os contribuintes de alta renda. É medida que precisa ser complementada pela atualização da tabela do IR — que deve, inclusive, ser indexada à inflação medida pelo IPCA. Mas sem dúvida é um passo na direção correta, e eloquente pelo placar da votação: 493 excelências votaram a favor da proposta, e nenhuma ousou se opor. Uma clara demonstração de que mesmo o Congresso mais reacionário da história republicana está sujeito à pressão da sociedade. Afinal, há o que comemorar!
*Com a colaboração de Pedro Amaral.
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