Política
Rejeitos aos pés de Zema
A Polícia Federal desmantela a maior organização criminosa ligada ao meio ambiente em Minas Gerais


Na madrugada da quarta-feira 17, moradores da região metropolitana de Belo Horizonte acordaram assustados com um leve tremor de terra. De acordo com a Rede Sismográfica Brasileira, o abalo registrou magnitude de 2,9 na Escala Richter, uma das principais formas de medir a intensidade desses eventos naturais. As chances de um grande terremoto no Brasil, dizem especialistas, são remotas, mas o País não está totalmente livre dos impactos. O tremor, felizmente, não deixou vítimas nem destruição.
Poucas horas depois, Minas Gerais sofreu, no entanto, outro tipo de estremecimento, desta vez, político. Às 6 horas da manhã fria de inverno, dezenas de agentes da Polícia Federal saíram às ruas para cumprir mandados de busca e apreensão no âmbito da “Operação Rejeito”, que desarticulou um esquema bilionário de corrupção no setor mineral estadual. O abalo atingiu diretamente o alto escalão do governo de Romeu Zema, pré-candidato à Presidência da República, e a Agência Nacional de Mineração.
A ação ocorreu em Minas Gerais, Alagoas, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Foram cumpridos 79 mandados de busca e apreensão e 17 mandados de prisão preventiva. Quinze suspeitos foram presos, mas dois dos alvos não tiveram a prisão efetuada por estarem foragidos. Todos vão responder por corrupção, lavagem de dinheiro, crimes ambientais e contra a ordem econômica. Por ordem da Justiça, servidores públicos citados na investigação foram afastados de seus cargos, ativos financeiros de 1,5 bilhão de reais foram bloqueados e as atividades de empresas envolvidas no esquema foram suspensas. A operação contou com a participação da PF, da Controladoria-Geral da União, do Ministério Público Federal e da Receita Federal. A magnitude política do episódio silenciou o governador Zema por mais de 24 horas, evidenciando um paradoxo: o discurso anticorrupção que o elegeu em 2018 agora se choca com investigações que atingem gestores do alto escalão e, portanto, de sua total confiança.
Os projetos fraudulentos tinham potencial de arrecadar 18 bilhões de reais
O grupo investigado reunia empresários, advogados e até um delegado da PF, Rodrigo Teixeira, responsável pela investigação da facada em Jair Bolsonaro durante a campanha de 2018, e Guilherme Santana Lopes Gomes, da Agência Nacional de Mineração. A organização é acusada de corromper servidores para obter autorizações e licenças ambientais fraudulentas. A quadrilha utilizava ao menos quatro camadas de empresas sobrepostas para dificultar o rastreamento da origem do dinheiro. Segundo a PF, o grupo desviava recursos, neutralizava a ação do Estado e monitorava autoridades ambientais, impedindo investigações e preservando a atividade ilícita. Relatórios dos investigadores indicam que projetos vinculados ao esquema tinham potencial econômico superior a 18 bilhões de reais. O grupo liberava autorizações ambientais fraudulentas, explorava minério de ferro em áreas tombadas e de preservação e lavava dinheiro por meio de dezenas de companhias de fachada. As práticas resultavam em graves impactos ambientais e riscos sociais elevados.
A oposição reagiu. Para a petista Beatriz Cerqueira, trata-se do “maior escândalo de corrupção dos últimos anos em Minas Gerais”, com participação de administradores estaduais vinculados a Zema. Bella Gonçalves, do PSOL, iniciou a coleta de assinaturas para a abertura de uma CPI da mineração irregular no estado, lembrando que o esquema prejudicou áreas tombadas, entre elas a Serra do Curral, cartão-postal de Belo Horizonte. “A história da mineração em Minas é marcada por tragédias ambientais, como Mariana e Brumadinho, e, como se prova agora, por corrupção. Essa realidade tem de acabar. Começamos a recolher assinaturas para abertura de uma CPI, para ajudar nas investigações dos esquemas.”
Associados. O delegado Teixeira, do inquérito da facada em Bolsonaro, Gomes e Lages figuram na lista de presos durante a operação do dia 17 de setembro – Imagem: Ricardo Barbosa/ALMG, Redes Sociais e Redes Sociais/SGB
A Operação Rejeito deriva de uma ação policial de 2020 chamada “Poeira Vermelha”, que identificou a exploração mineral irregular na Serra do Curral. À época, a extração estava oficialmente interrompida desde os anos 1990, mas empresas voltaram a atuar ilegalmente, depois de identificar lacunas de fiscalização e se valer de flexibilizações normativas. “Passaram-se mais de dez anos e a gente não viu nada consistente. Com a justificativa de reparar o dano ambiental, as empresas encontram subterfúgios para continuar escavando”, afirma Gonçalves.
O empresário Alan Cavalcante do Nascimento, natural de Alagoas, coordenava a organização criminosa, segundo a PF. Nos últimos cinco anos, Nascimento movimentou 82 bilhões de reais em operações fraudulentas. Ganhou notoriedade em 2022 ao arrematar um blazer e joias do atacante Neymar por 1,2 milhão de reais em um leilão beneficente. O empresário, aponta a investigação, utilizava a Mineração Gute Sicht para extrair minério ilegalmente, simulando terraplenagem, e transferia o material para a Fleurs Global Mineração, que beneficiava o minério e revendia no mercado formal. Seu patrimônio inclui imóveis de alto valor, sítios e extensas áreas na Serra do Curral. Parte das informações que levaram à sua prisão veio do depoimento de sua ex-mulher, que revelou os esconderijos do dinheiro e descreveu comportamentos manipuladores do empresário. A testemunha descreve o ex-marido como “psicopata”. Segundo ela, após a deflagração da Operação Poeira Vermelha, Nascimento “mandou destruir provas, pediu a um funcionário que sumisse com livros e pastas pretas e orientou um sócio a queimar documentos”.
O esquema inclui também o ex-deputado João Alberto Paixão Lages, responsável por relações institucionais, e Helder Adriano de Freitas, diretor operacional que elaborava contratos e coordenava operações minerárias em órgãos ambientais. As falcatruas eram articuladas em um grupo de WhatsApp nomeado de “Três Amigos Mineração” e incluíam a expedição de pareceres técnicos, licenças e atos normativos em favor do grupo e contra concorrentes. Empresas do grupo, como a Fleurs Global Mineração, movimentaram bilhões e se destacaram entre as mais autuadas por infrações ambientais. A PF identificou nesse cipoal corporativo uma estratégia deliberada de confusão patrimonial para dificultar as investigações e favorecer os ganhos ilícitos.
Zema só se pronunciou dois dias depois de o escândalo vir à tona
O esquema não é recente. Desde 2020, a PF suspeitava da quadrilha, mas vazamentos impediram ações mais eficazes. A revista CartaCapital denunciou, em 2022, o arranjo criminoso na reportagem “Porta Giratória”, que expôs a migração de servidores do setor público para a iniciativa privada, atuando em interesses corporativos. Um exemplo é o do foragido Hidelbrando Canabrava Neto, que saiu da Secretaria Estadual do Meio Ambiente para se tornar sócio de mineradoras, mantendo vínculos com agentes públicos. Segundo o relatório da PF, Canabrava associou-se a outros investigados em diferentes empreendimentos, atuando no nível operacional da organização criminosa.
Mensagens interceptadas durante a Operação Rejeito mostram tentativas da quadrilha de barrar o Projeto de Lei 1449, de 2023, de autoria da deputada Beatriz Cerqueira, que visava transformar a Serra do Curral em patrimônio tombado. Agora, depois de dois anos engavetado por conta do lobby da quadrilha, e na esteira do escândalo, o PL acabou aprovado na terça-feira 24. Deverá proteger 442 milhões de metros quadrados, área superior à extensão da capital Belo Horizonte. “Precisamos cuidar dos nossos territórios para que a gente tenha futuro. A Serra do Curral é um clamor da população de BH”, comemorou a parlamentar.
Nas 104 páginas do relatório, a PF detalha pagamentos de propina, manipulação de decretos estaduais e revogação de licenças ambientais em benefício do grupo criminoso. O então presidente da Feam, Rodrigo Gonçalves Franco, enviou mensagem a Lages sobre propina de 500 mil reais para a venda de licença ambiental a uma das 42 empresas da quadrilha. Franco atuou na alteração de normas, assinadas por Zema, que abriram brechas ao licenciamento sem pagamento de multas, o que resultou em prejuízo ao Estado e lucro à organização criminosa.
Por dentro. O relatório policial descreve a infiltração da quadrilha nas estruturas estatais e a influência na definição
de decretos e regras ambientais
De acordo com a Justiça, o Decreto nº 47.749, de 2019, determinava que o pagamento de sanções administrativas ambientais, como multas decorrentes de autos de infração, era condição obrigatória para o prosseguimento de processos de licenciamento ambiental. Esse ponto foi, no entanto, modificado em novembro do ano passado por meio de outro decreto, encaminhado pela organização criminosa, com o intuito de retirar a exigência e beneficiar a Patrimônio Mineração Ltda., que obteve a autorização para explorar uma lavra pertencente à Cedro Laboratório e Serviços Ltda. Quatro dias antes de a PF sair às ruas, Franco foi exonerado do cargo pelo governador, que jogou a medida na “conta de fofocas nos corredores do Palácio Tiradentes”.
O grupo, indicam os investigadores, utilizava métodos sofisticados de lavagem de dinheiro, possuía intensa articulação política e influenciava normas ambientais para interesses privados, consolidando um esquema criminoso protegido por anos do alcance pleno da lei. Dois dias depois de o escândalo vir à tona, Zema dignou-se a dizer algo a respeito. Declarou-se surpreso com a extensão do crime e prometeu auditar todos os licenciamentos ambientais das empresas investigadas. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Rejeitos aos pés de Zema’
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