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Sergipe: Liberação de água para haras da primeira-dama teve ajuda de servidor estatal

Luiz Gonzaga Luna Reis, lotado na companhia desde 1983, também foi um dos técnicos responsáveis pelo projeto de irrigação da propriedade

Sergipe: Liberação de água para haras da primeira-dama teve ajuda de servidor estatal
Sergipe: Liberação de água para haras da primeira-dama teve ajuda de servidor estatal
A primeira-dama de Sergipe, Érica Mitidieri, ao lado do esposo Fábio - Reprodução/Haras Esperanza no Instagram
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Uma empresa de seguros controlada pela primeira-dama de Sergipe, Érica Mitidieri, e suas filhas contou com ajuda direta de um servidor da Coderse (antiga Cohidro, extinta em 2023), companhia que atua na gestão da política de recursos hídricos no estado, para obter outorga de captação de água destinada à irrigação de uma propriedade da família Mitidieri no interior sergipano.  

Além de ter recebido uma procuração que lhe concedia poderes para atuar em nome da M Cavalcante Ltda. junto à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Ações Climáticas, o engenheiro agrônomo Luiz Gonzaga Luna Reis, lotado na companhia desde julho de 1983, também figurou como técnico responsável pelo projeto de irrigação da propriedade, segundo documentos obtidos por CartaCapital

Foi através dessa empresa que Érica, atual secretária estadual de Assistência Social, obteve aval para utilizar os recursos hídricos do riacho Tabocas, um afluente da bacia hidrográfica do Rio Vaza Barris, na Fazenda Haras e Parque Esperanza. A área está localizada no município de Itaporanga D’Ajuda (a 32 quilômetros de Aracaju). A M Cavalcante é dona da propriedade, comprada em 2021 do empresário Beto Chamusca, segundo uma publicação feita à época no perfil oficial do haras no Instagram. 

A primeira outorga para irrigação foi concedida em abril de 2023, quando José Carlos Felizola Filho estava à frente da Semac. Em abril deste ano, a pasta renovou a outorga por 24 meses. Em ambos os casos, Luna Reis esteve à frente da interlocução com a secretaria, enviando a documentação necessária para receber o sinal verde à utilização da água. 

Há indícios de conflito de interesses e possível advocacia administrativa na atuação de Luna Reis. O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de Sergipe é explícito: ao servidor é proibido “constituir-se procurador ou intermediário, junto às repartições públicas”, exceto se representando os interesses de parentes até o terceiro grau, o que não é o caso.  

Por telefone, o engenheiro confirmou ter atuado junto à Semac no processo de outorga da M Cavalcante e disse não ver conflito de interesses. Ele não quis responder se foi contratado especificamente para obter a outorga e se recusou a responder aos demais questionamentos, afirmando preferir encontrar a reportagem “pessoalmente, na Coderse” e desligando a ligação em seguida.

A primeira-dama foi procurada por meio de sua assessoria, na terça-feira 23, mas ainda não havia respondido até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto.

A legislação brasileira estabelece que água é um recurso natural de domínio público: pertence à sociedade e, por isso, não pode ser apropriada sem controle. Assim, quem deseja usá-la para irrigar plantações, abastecer indústrias ou criar animais, por exemplo, precisa de autorização legal para evitar o uso indiscriminado e garantir que o recurso seja compartilhado de forma justa.

Em Sergipe, cabe à Semac autorizar ou não o uso dos recursos hídricos. Quem quer usar a água em larga escala precisa entrar com um pedido, apresentar documentos, mapas da área, justificativas técnicas e, em alguns casos, licenças ambientais. 

A pasta avalia se há água suficiente disponível naquela região, se o uso é adequado e se não vai prejudicar outras pessoas que dependem da mesma fonte hídrica. Caso esteja tudo certo, a pasta publica uma portaria de outorga, definindo quanto de água pode ser usado, para qual finalidade, por quanto tempo e sob quais condições.

CartaCapital teve acesso à documentação dos dois requerimentos apresentados por Érica Mitidieri para obter a outorga através da Lei de Acesso à Informação. Luiz Gonzaga Luna Reis é mestre em Engenharia Civil e Ambiental pela Universidade Federal da Paraíba, está lotado na Divisão de Assistência Técnica da Coderse e possui salário mensal de 15 mil reais. 

Na primeira solicitação, feita em 30 de janeiro de 2023, primeiro mês da gestão Fábio Mitidieri, o servidor da Coderse apresentou uma Anotação de Responsabilidade Técnica em que se coloca como responsável técnico do projeto. Há, no documento, menção a um contrato com a primeira-dama celebrado no dia seguinte à requisição da licença e com previsão de término em novembro daquele ano. O serviço saiu ao custo de 1.500 reais. 

Procuração concedida pela M Cavalcante Ltda., empresa controlada pela primeira-dama Érica Mitidieri e duas filhas, concedeu a servidor da Coderse poderes para atuar em processo de outorga de água a haras da família do governador – Arte/CartaCapital/Reprodução/Ascom Fábio Mitidieri/Coderse

Por duas vezes ao longo da tramitação, Luna Reis respondeu a e-mails de profissionais da Semac que atuavam no setor responsável pelos pedidos de outorga e constataram a ausência de documentos, a exemplo de procuração para atuar em nome de Érica. 

O e-mail utilizado, conforme apurou a reportagem, estava vinculado à Rural Planejamento, uma empresa aberta em 1995 pelo engenheiro voltada a atividades que vão de “taquigrafia, serviços de almoxarifado e computação gráfica” ao agenciamento de profissionais para atividades esportivas, clipagem de notícias e design gráfico. A empresa está suspensa desde 2006. 

Na segunda solicitação, cujo objetivo era renovar por mais dois anos a licença concedida em abril de 2023, uma procuração assinada em janeiro de 2025 por Sophia Cavalcante Mitidieri, a sócia-administradora da M Cavalcante, permitiu que Luna Reis atuasse em seu nome na “prática de todos os atos necessários à execução do processo de solicitação de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos, para fins de irrigação”.

Vale pontuar que apesar de a filha do governador administrar a empresa, quem detém 80% do seu capital social é Érica. Sophia assumiu o comando da sociedade por meio de uma mudança contratual ocorrida em março de 2024. Na ocasião, a empresa aumentou seu capital social de 5 mil para 200 mil, sendo que o valor adicionado seria “proveniente de reserva de lucros”. Outra filha do governador, Ana Célia Mitidieri, também compõe o quadro societário da M Cavalcante. 

A primeira outorga concedida à família Mitidieri foi publicada no Diário Oficial do Estado em nome da primeira-dama, mas continha uma tarja que impedia conferir o CNPJ do solicitante.

Durante a análise do pedido de renovação, os técnicos da Semac tiveram dúvidas sobre se a nova portaria registraria o aval ao uso dos recursos hídricos em nome de Érica ou da M Cavalcante, conforme registram as correspondências trocadas entre Ronaldo Morais de Almeida Mesquita, analista da Coordenação de Outorga e Cobrança, e o servidor da Coderse nos dias 17 e 18 de fevereiro de 2025.

Às 19h do dia 20 daquele mês, Luna Reis enviou os documentos complementares, mas sinalizou interesse em resolver o impasse de forma célere: “Não sei se estar (sic) 100%, caso [não] esteja [e] precise irei presencialmente conversar contigo”, registra o e-mail enviado pelo engenheiro. No fim, o sinal verde para manter a utilização da água no haras foi concedido em nome da empresa de seguros – e, desta vez, sem tarjas. “O motivo da transferência deu-se por que passou de Pessoa Física para Pessoa Jurídica”, justificou Sophia em documento apresentado ao longo do processo.

Com a renovação, manteve-se a permissão para retirar aproximadamente 39,210 mil metros cúbicos do riacho Tabocas no período de um ano – o equivalente a 16 piscinas olímpicas cheias d’água, conforme as medidas da Federação Internacional de Natação.

Com esse volume também seria possível garantir o consumo de ao menos 52 mil pessoas por um mês, considerando o consumo médio de 75 litros ao dia por pessoa (padrão da Organização das Nações Unidas, a ONU, para necessidades básicas). 

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