Mundo
De mãos dadas
Em resposta às tarifas dos EUA, Brasil e Índia precisam incrementar o comércio bilateral, diz Jayant Krishna


As taxas de 50% foram uma forma injusta de castigo imposto pelos Estados Unidos contra as exportações de Índia e Brasil. Agora, a melhor forma de revidar é multiplicar por quatro o comércio entre os dois integrantes originais dos BRICS nos próximos anos, defende o indiano Jayant Krishna, analista sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês). Segundo ele, a política hostil do governo Trump foi uma forma “mesquinha e míope” de prejudicar antigos parceiros para mandar um recado velado à China, com quem os EUA evitam bater de frente, apesar da retórica agressiva. Daqui em diante, diz Krishna, o petróleo brasileiro pode tornar-se um elemento de interesse especial para a segurança energética de uma Índia tarifada pelos EUA justamente por ter furado as sanções impostas por norte-americanos e europeus contra o óleo exportado pela Rússia.
Carta Capital: Por que Trump impôs à Índia e ao Brasil algumas das tarifas comerciais mais altas do mundo?
Jayant Krishna: No caso da Índia, foi pela importação de petróleo da Rússia. No do Brasil, foi pelo que Trump chamou de caça às bruxas contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Muitos especialistas afirmam, no entanto, que ele estava, na verdade, buscando acertar indiretamente as contas com a China, com quem os EUA tiveram um enorme déficit comercial, de 295 bilhões de dólares em 2024. Como Trump não poderia dar-se ao luxo de impor tarifas de mais de 30% sobre a China, porque esse é um parceiro indispensável, e qualquer medida retaliatória aplicada, por exemplo, contra a exportação de terras-raras e alguns bens patenteados chineses poderia prejudicar enormemente a própria economia norte-americana, ele decidiu então taxar a Índia e o Brasil. Os dois países tornaram-se alvos fáceis de tarifas injustificadas de 50%, que serviram, no fundo, para enviar um sinal forte, ainda que indireto, aos chineses.
CC: Modi foi muito próximo de Trump. Ambos têm um perfil político nacionalista e conservador. O que mudou nessa relação?
JK: Eles são autoproclamados amigos. Só que os esforços equivocados de Trump para “tornar a América grande novamente”, juntamente com uma série de considerações mesquinhas e míopes, acabaram relegando ao esquecimento uma parceria vantajosa para as duas das maiores democracias do mundo. O atual governo dos Estados Unidos jogou por terra o legado deixado pelos três últimos primeiros-ministros indianos: Atal Behari Vajpai, Manmohan Singh e Narendra Modi. E pelos quatro últimos presidentes dos EUA: George W. Bush, Barack Obama, o próprio Trump, em seu primeiro mandato, e Joe Biden. Jogou por terra 25 anos de uma parceria estratégica que tinha certo grau de mutualidade.
A meta, defende o especialista, deveria ser quadruplicar as trocas até 2030
CC: Lula e Modi falam em intensificar as relações comerciais entre a Índia e o Brasil para compensar as perdas impostas pelos EUA, mas quais são as chances reais de isso realmente funcionar?
JK: O Brasil já é o maior parceiro comercial da Índia na América Latina. O comércio entre os dois países foi de 12,54 bilhões de dólares em 2024, com os indianos exportando 7,25 bilhões ao Brasil e os brasileiros exportando 5,26 bilhões à Índia, o que resulta em 2 bilhões de superávit para o lado indiano, focado principalmente na exportação de derivados de petróleo, produtos farmacêuticos, produtos químicos orgânicos e inorgânicos, inseticidas, fungicidas e peças automotivas para motocicletas, enquanto importa principalmente açúcar de cana, madeira, algodão, óleos brutos, tanto de petróleo quanto de soja, amianto, sementes de gergelim e resíduos de cobre, de ferro e de aço. Os dois países precisam criar um grupo de estudo para identificar as principais competências e vantagens comparativas de cada um. Em seguida, é preciso elaborar estratégias para elevar esse comércio bilateral anual a 50 bilhões de dólares até 2030. Como os EUA pressionam a Índia a diminuir ou deixar de importar petróleo bruto da Rússia, este seria um item importante a considerar nas importações futuras, e o Brasil poderia dar uma contribuição importante no campo da segurança energética indiana.
CC: Quais progressos concretos foram alcançados pelos países dos BRICS até o momento? Qual é o horizonte de convergência econômica para este grupo dentro de cinco ou dez anos?
JK: Os BRICS+ representam 46% da população mundial, 25% das terras do mundo e 37% do PIB global em termos de Paridade do Poder de Compra. Ele não é uma alternativa ao G7 nem é anti-Ocidente. Tampouco é um grupo antiamericano. Nos últimos 16 anos, os BRICS implementaram iniciativas como o Novo Banco de Desenvolvimento, o BRICS Pay, o Acordo de Reserva Contingente, a Publicação Estatística Conjunta e a moeda de reserva da cesta dos integrantes. A expansão do grupo sinaliza uma mudança em direção à governança global multipolar, oferecendo às nações do Sul Global alternativas às instituições tradicionais que, por meio de uma série de reformas, foram dominadas pelo Ocidente. Embora persistam desafios em relação ao consenso interno entre os países dos BRICS e à resistência dos EUA, a aliança continuará a atrair novos participantes no futuro, buscando oportunidades econômicas e a redução da dependência ocidental em várias áreas estratégicas importantes.
CC: China e Rússia não são democracias. Quão conveniente é para Brasil, Índia e África do Sul, que são democracias, estarem em um bloco com duas ditaduras para discutir questões como controle da internet e regulamentação das mídias sociais?
JK: A maioria dos grupos internacionais ou regionais de nações é bastante heterogênea, com uma mistura de democracias, ditaduras e até monarquias. Embora diálogos e esforços colaborativos sejam mais fáceis entre nações democráticas, é impossível encontrar soluções para os complexos problemas globais sem negociar com nações governadas de forma ditatorial. Aliás, é ainda mais importante interagir com ditaduras neste mundo dilacerado por conflitos para encontrar caminhos e meios para uma ordem global justa e equitativa. •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De mãos dadas’
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