Justiça

Entre apartes e apartados: os bastidores da condenação de Bolsonaro pela trama golpista

Em 27 horas de julgamento, entre acordos rompidos e um pesado silêncio no plenário, testemunhei a primeira condenação de um ex-presidente brasileiro por golpe de Estado

Entre apartes e apartados: os bastidores da condenação de Bolsonaro pela trama golpista
Entre apartes e apartados: os bastidores da condenação de Bolsonaro pela trama golpista
Os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux durante o julgamento do núcleo crucial da trama golpista no STF. Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Luiz Fux até tentou se manter impassível durante o voto da ministra Cármen Lúcia, mas quebrou o próprio protocolo ao escrever um bilhete em papel e pedir para a secretária da Primeira Turma, Cintia da Silva, entregá-lo ao presidente Cristiano Zanin. O ministro parecia incomodado com a sequência de alfinetadas que vinha recebendo não só da decana do colegiado, mas também dos colegas Flávio Dino e Alexandre de Moraes.

Fux respirava fundo, curvado sobre as próprias anotações. Às vezes, chamava discretamente um dos capinhas — servidores responsáveis por organizar e distribuir processos e documentos no Supremo — para dar uma ordem. Por duas vezes, demonstrou irritação com os funcionários que não notavam seus chamados discretos, com o dedo em riste.

O quarteto formado por Cármen, Moraes, Dino e Zanin demonstrou sintonia ao longo de toda a sessão de quinta-feira 11, antes mesmo da fase da dosimetria das penas. Naquele momento, o relator da ação da trama golpista aceitou sugestões dos colegas e recalculou a punição de Paulo Sérgio de Oliveira e Alexandre Ramagem, que ganharam alguns meses de liberdade.

O entrosamento em losango – e isolamento de Fux – ficara ainda mais evidente com a exibição dos vídeos de 7 de Setembro de 2021, quando o então presidente Jair Bolsonaro (PL) atacou a Corte na Avenida Paulista, e de 8 de Janeiro de 2023, quando golpistas invadiram as sedes dos Três Poderes. “Não está Mauro Cid presidente. Não está Braga Netto presidente […]. Aqui está o líder da organização criminosa: presidente Jair Messias Bolsonaro”, exclamou Moraes, rebatendo diretamente o voto de Fux, que condenara apenas o ex-ajudante de ordens e o general de quatro estrelas.

Nas quase 13 horas de voto no dia anterior, Fux não fora interrompido uma só vez. Ele mesmo revelara, dois dias antes, um acordo tácito entre os ministros de não fazer apartes durante a fala dos colegas – regra dispensada por Cármen Lúcia já nos primeiros 20 minutos da sessão de ontem, quando permitiu que Dino interviesse.

Entre piadas do maranhense e falas incisivas do relator, Fux deixou o plenário por cinco minutos enquanto Cármen resumia seu voto de 356 páginas (o de Fux passava de 400). Às 15h59, quando a decana da Primeira Turma condenou Bolsonaro por todos os crimes da trama golpista, o ministro estava na sala reservada ao fundo da Primeira Turma. O momento histórico — a primeira condenação de um ex-presidente da República por tentativa de golpe de Estado — foi acompanhado por um silêncio denso, quebrado apenas pelo teclar apressado dos computadores de jornalistas e assessores.

Quando Zanin anunciou que a Turma ainda votaria a dosimetria da pena naquela quinta-feira, houve protestos tímidos dos repórteres da imprensa nacional, esgotados após mais de 27 horas de cobertura ininterrupta, misturados a vozes em inglês, espanhol e mandarim. Ao todo, pelo menos 55 jornalistas estrangeiros estavam credenciados. Na primeira fila, o rosto de Maria Luiza, irmã de Cármen Lúcia, trazia um discreto gesto de alívio.

Enquanto os ministros calculavam as penas, o tenente-coronel Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara, falava ao celular — o que é proibido no plenário do STF. Comentava que a Câmara votaria, em 17 de setembro, o regime de urgência da anistia aos golpistas, e que a oposição bolsonarista planejava nova obstrução caso o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), não pautasse o tema. A resposta veio de imediato do líder do PT, Lindbergh Farias (RJ): o perdão a Bolsonaro, disse, estava enterrado.

As presenças de Gilmar Mendes, no início, e de Luís Roberto Barroso, ao final, deram ao julgamento de Bolsonaro uma aura de unidade pouco usual na Corte. O presidente do STF chegou a se sentar na mesa da Primeira Turma e proclamar o final do julgamento. Disse que ninguém ali saia feliz com o resultado: “Mas a gente deve cumprir com coragem e serenidade as missões que a vida nos dá.”

Barroso estava errado. Havia, sim, quem sorrisse – inclusive no entorno dos condenados. Cezar Bitencourt e Jair Alves Pereira, advogados de Mauro Cid, fizeram pouco esforço para esconder a empolgação com a sentença imposta ao seu cliente: apenas dois anos de reclusão, em regime aberto, com direito a proteção policial estendida à família.

A felicidade da dupla contrastava com nuvem negra armada no alto da cabeça do advogado de Bolsonaro, Paulo Amador Cunha Bueno. Assim que viu a maioria se formar contra o seu cliente, Bueno deixou o plenário em marcha apressada. Não ficou para ouvir pessoalmente a sentença imposta a seu cliente: 27 anos e 3 meses de prisão. Do lado de fora, um dos advogados de Cid, ainda animado, resumiu em tom festivo o saldo daquela noite: “Hoje vai ter vinho.”

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