Roberto Rockmann | Pantagruélicas
Ideias e memórias e de um jornalista apaixonado pelos vinhos e a gastronomia
Roberto Rockmann | Pantagruélicas
As memórias do paladar de Mino Carta
A Itália, o vinho e a cozinha familiar moldaram a sensibilidade gustativa do maior jornalista do País


Desde pequeno, Mino Carta cultivava um fascínio pela mesa. Passava horas observando suas duas avós na cozinha, absorvendo aromas, gestos e segredos culinários. No aniversário de seis anos, tomou a iniciativa de pedir um cardápio especial: à avó Eugenia, pediu um risoto com flores de abobrinha e uma mustela — peixe típico da região do sul da Itália — preparada apenas com sal, azeite e limão. Para encerrar a refeição, recorreu à avó Adele, pedindo uma crostata, a clássica torta assada italiana.
O gosto pelo vinho chegou cedo. Ainda aos três anos, quando ainda morava em Gênova. Na hora da sobremesa, uma gota de grapa, aguardente italiana à base de vinho, era pingada sobre um torrão de açúcar. Sua avó Adele girava com uma colher a mistura e o servia. O gesto marcaria o início de uma relação duradoura e afetiva com a bebida.
Sua memória gustativa era repleta de lembranças da Itália. Nascido em Gênova, na Ligúria, Mino guardava no manjericão um dos sabores mais vivos de sua infância. A erva aromática o transportava de volta às cozinhas familiares. Discorria sobre as diferenças entre o perfume do manjericão de Gênova, de folha menor, e o de San Remo, de folha maior. O mesmo acontecia com o tomate de San Marzano, vindo da Campânia, no sul da Itália.
Durante a Segunda Guerra, quando Gênova foi duramente castigada pelos bombardeios parte da família se refugiou no Piemonte, região célebre por seus tintos robustos, como barolos e barbarescos.
Seu avô Demetrio, embora abstêmio, gostava de passear pelas cidadelas e pelos vinhedos. O neto o acompanhava, curioso. Quando encontravam viticultores, o espírito jornalístico de Mino já se insinuava: perguntava, investigava, queria saber de tudo. Ali nasceu sua paixão pela nebbiolo — a uva que daria corpo aos grandes vinhos piemonteses — e a ligação com restaurantes como o Felicin, no coração de Barolo.
Nessas andanças, Mino chegou a conhecer Clotilde Gaja, avó de Angelo Gaja — o enólogo que, a partir dos anos 1960, modernizou a produção italiana e se tornou uma referência mundial. Os vinhos da família Gaja entraram para sua memória afetiva. Por décadas, Mino foi frequentador assíduo do restaurante Massimo, atraído sobretudo pela adega, repleta de safras antigas de Gaja que lhe tocavam o coração.
Gostava da comparação de Gaja: se a nebbiolo fosse ator, seria Marcello Mastroianni; a cabernet sauvignon, John Wayne. “Nebbiolo tem mistério, profundidade, elegância. Caráter.”
Quando lhe perguntavam qual cozinha preferia, Mino sorria. Não se prendia ao Piemonte: misturava o pesto genovês, o bacalhau à siciliana e tantos outros pratos regionais. Também suas mesas favoritas eram variadas, embora o La Pergola, em Roma, comandado por Heinz Beck, tivesse lugar de destaque. Modismos, porém, jamais o seduziram: abominava a cozinha sem alma.
Nos anos 2000, a cozinha molecular virou febre, impulsionada pelo espanhol Ferran Adrià e seu célebre El Bulli. Espumas e experimentos químicos começaram a ocupar os pratos, dividindo paladares. No início da década seguinte, ao entrevistar Heinz Beck, Mino abriu seu texto sem rodeios:
“De quando em quando colhem-se na Terra provas da existência de Deus. Eis aí, acaba de fechar o restaurante El Bulli de Ferran Adrià, o inventor da chamada cozinha molecular, que inúmeros prosélitos fez pelo mundo para alegria de quem não aprecia os sabores autênticos da comida genuína. Nesta entrevista, Heinz Beck, o chef bávaro do restaurante La Pergola do hotel Cavalieri Hilton de Roma, vaticinava, logo após o Natal do ano passado, o fim de uma experiência química que, por exemplo, se esmera em transformar camarões em espuminha tão insondável quanto névoas escocesas nas madrugadas invernais.”
Além de frequentar restaurantes, Mino também gostava de cozinhar e de reunir amigos em torno da mesa. Tinha sua própria régua para dividir os cozinheiros entre bons e ruins: a quantidade de alho usada nos pratos. Para ele, essa era uma medida reveladora, assim como o uso de ingredientes de qualidade e a fuga de modismos. E repetia, como um mantra, o princípio que guiava sua cozinha: “Tudo tem de ser simples.”
No vinho, dizia ter tido um professor: Luigi Veronelli, crítico e escritor que, nos anos 1950, ensinou as vinícolas italianas a buscar qualidade. Bruno Giacosa, um dos grandes produtores, dizia que Veronelli mostrara que “grandes vinhos nasciam nos vinhedos.” Mino conheceu-o numa viagem ao Brasil. Jantaram, beberam, se deram bem.
Entre os vinhos de contemplação, um lhe era especialmente caro: o barolo Monfortino, de Giacomo Conterno. No início dos anos 1990, comprou algumas garrafas da safra 1985. Anos depois, ofereceu sua última delas a Luiz Inácio Lula da Silva, recém-saído da prisão. Como estava? “Dos céus!”, respondeu.
Um brinde a Mino.
P.S.: O site pisandoemuvas publicou uma longa entrevista com Mino sobre vinhos e comida.
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