Cultura
Entre a fábula e a distopia
O premiado O Último Azul nasceu de acordos internacionais de coprodução firmados com Holanda, México e Chile


O Brasil estava na expectativa pelo que aconteceria com Ainda Estou Aqui na cerimônia do Oscar, quando, do Festival de Berlim, chegou a notícia do Urso de Prata recebido por O Último Azul. O prêmio, anunciado em 22 de fevereiro, inaugurou uma sequência de conquistas internacionais do cinema brasileiro.
No primeiro domingo de março, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, ganhou um inédito Oscar de Melhor Filme Internacional – antes havia levado o Globo de Ouro para Fernanda Torres. Em maio, O Agente Secreto saiu de Cannes com duas Palmas de Ouro: a de Direção, para Kleber Mendonça Filho, e a de Ator, para Wagner Moura.
O Urso da Berlinale marcaria ainda um novo momento na carreira do diretor Gabriel Mascaro, mais jovem e menos conhecido que Salles e Mendonça. Em conversa com CartaCapital, um dia após uma pré-estreia no Rio de Janeiro, ele disse que, de fato, nunca havia dado tantas entrevistas sobre um filme.
O Último Azul, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 28, foi vendido para outros 65 países e já participou de mais de 50 festivais pelo mundo.
Embora absolutamente distintos, Ainda Estou Aqui, O Agente Secreto e O Último Azul guardam duas características comuns: foram viabilizados por meio de financiamentos internacionais e são fruto de visões muito particulares de cinema, dificilmente compatíveis com a lógica de produção de uma plataforma de streaming ou de um grande estúdio.
O Último Azul começou a ser gestado dez anos atrás, quando Mascaro submeteu um projeto de desenvolvimento de roteiro para o festival de Roterdã, na Holanda. “Era um fundo simples, que investe na criação”, conta o cineasta.
O argumento expressava seu desejo de pensar o corpo idoso a partir de uma jornada de aventura: “Eu queria algo diferente da perspectiva de filmes que falam sobre idosos lidando com a morte ou que vivem na nostalgia da memória passada. Minha vontade era falar sobre a pulsão de vida, do direito a sonhar”.
A partir da escrita do roteiro, foram sendo firmados contratos com outros fundos internacionais, como o Netherlands Film Fund e o Ibermedia. No Brasil, o projeto foi contemplado por um edital do Fundo Setorial do Audiovisual e pelo Funcultura, de Pernambuco – cerca de dois terços dos recursos são brasileiros.
Mas eis que, com o orçamento garantido, veio o que o diretor chama de “dupla pandemia”, formada pelo Coronavírus e pelo governo Bolsonaro. “Passamos três anos esperando o dinheiro ser liberado”, recorda Mascaro. “Chegamos a entrar na Justiça porque tínhamos compromissos firmados com outros países e o Brasil não cumpria sua parte. Mas a pandemia acaba ajudando em nossas justificativas.”
Rodado em cidades da Amazônia, o filme se passa sob um Estado que tenta se “livrar” dos idosos
O filme foi rodado entre junho e julho de 2023, nas cidades amazonenses de Manaus, Novo Airão e Manacapuru. Ao mesmo tempo que foi impregnada pela floresta e pelas comunidades ribeirinhas – são mais de 20 atores locais – a produção contou com muitas contribuições internacionais.
“Quando um filme consegue recursos de um fundo em outro país, esse dinheiro não vem para o Brasil. O orçamento tem de ser gasto no país de origem, então trabalhamos com equipes de diversos lugares”, explica Mascaro. O montador é chileno e o fotógrafo, mexicano. A mixagem foi feita na Holanda e toda a pós-produção e a trilha sonora, no México.
“Uma produção começa pela parte chata, falando de dinheiro, mas também se fala de arte, né? Eles te perguntam: ‘Com quem do nosso país você quer trabalhar?’ No caso do Chile, trabalhei com Sebastián Sepúlveda”, diz, referindo-se ao profissional que montou filmes do prestigiado diretor chileno Pablo Larraín.
“As coproduções possibilitam trocas e conversas sobre cinema, que nos proporcionam um olhar sem os vícios locais. Isso acaba nos ajudando a pensar em obras universais”, reflete Mascaro. O percurso internacional de seu filme indica ser válida essa leitura.
O Último Azul tem como protagonista uma mulher de 77 anos, Tereza, vivida pela atriz Denise Weinberg. A trama começa quando ela percebe movimentos do Estado em sua direção e desconfia: “Desde quando uma pessoa é homenageada só porque ficou velha?”
O destino que o Estado traçou para ela é aposentá-la e mandá-la para uma colônia de idosos. O objetivo dessa política é permitir que os jovens sigam produzindo sem ter de se preocupar com os mais velhos. “O filme mostra a Amazônia como um lugar de contradições, onde a preservação convive com uma linha de produção de carne de jacaré”, diz o cineasta. “É a Amazônia em meio a uma sociedade produtiva.”
Embora comece como uma distopia futurista – e tenha, nesse início, seu ápice –, o filme flerta depois com diferentes gêneros: “O filme vai migrando para uma coisa mais fantástica, meio fábula, e aí torna-se um filme de viagem, um boat movie, onde a estrada é o rio, e termina como um came of age (filmes que mostram a passagem para a vida adulta), um drama de maturação”.
Mascaro, que nasceu em 1983, em Pernambuco – mesmo estado de Kleber Mendonça –, diz que, quando faz um filme, busca olhar para dentro de si: “Quero fazer um filme que possa ser um espelho da forma como olho para o mundo. Mas isso não quer dizer que é um filme fechado. O Último Azul tem o desejo de conversar com as pessoas, de maneira sincera. Acho que é um filme lúdico, lírico, que pode tocar o público”.
Seus projetos anteriores, como o documentário Domésticas (2012) e a ficção Boi Neon (2015), embora selecionados para festivais relevantes e elogiados por parte da crítica, tinham uma comunicação mais difícil. “Com este, tenho uma expectativa maior”, admite, para em seguida reforçar que os fracos resultados de público não chegam a frustrá-lo: “Não me frustro porque sei o buraco em que estou me metendo, né?” •
Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Entre a fábula e a distopia’
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