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Verdade desvelada

Nadja Mendes Araújo cresceu ouvindo que o pai era bandido e a mãe a abandonara. Há pouco tempo, descobriu que eles foram vítimas da ditadura

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Arquivo. João Mendes de Araújo, o pai de Nadja, era um militante da ALN e foi executado por agentes da repressão – Imagem: Acervo Pessoal Nadja M. Araújo e Arquivo Público de Pernambuco
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Nadja Mendes de Araújo tinha apenas 4 anos quando foi morar com o avô materno, no início dos anos 1970. Cresceu ouvindo que o pai era bandido e que a mãe a havia abandonado. Só agora, aos 57 anos, descobriu que eles foram vítimas da ditadura. Seu pai, João Mendes de Araújo, foi perseguido e assassinado por agentes da repressão no apartamento onde morava, em Olinda, na Região Metropolitana do Recife. Sua mãe, Maria de Lourdes Lima, precisou fugir para não ter o mesmo destino do marido e levou consigo o filho mais novo, que ainda mamava. Já doente, pouco antes de morrer, o avô de Nadja pediu que ela não fosse entregue à mãe, deixando sua criação sob a responsabilidade de um tio, que deu continuidade à farsa.

“Minha vida foi uma mentira. Diziam que meu pai era um bandido e que minha mãe não gostava de mim, mas ela teve de fugir para não ser morta. Eu não sabia disso. Achava que ela tinha me descartado”, diz Nadja, que só descobriu a verdade em fevereiro deste ano, quando a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) esteve em Pernambuco, realizando diligências em cemitérios onde estão enterradas vítimas da ditadura. Uma reportagem transmitida por uma emissora de tevê local mencionou o nome de Araújo. Uma cunhada de Nadja viu a matéria e a alertou. A partir daí, ela iniciou uma saga para descobrir sua história familiar: procurou grupos de parentes de vítimas da ditadura, enviou e-mails para parlamentares e comissões estaduais da verdade, buscou informações no Arquivo Público e cruzou dados até ter certeza de que ela também era uma vítima do regime militar, que lhe tirou o direito de crescer ao lado dos pais.

“Não tenho muitas recordações do meu pai, mas lembro que, quando eu era bem pequena e ia dormir à tarde, ele gostava de ficar abraçado comigo. Depois, só lembro de ele ter sumido de repente. Ele e minha mãe. Tenho lembranças também de homens chegando lá em casa, procurando por eles, e meu avô me escondia. Ele não deixava que eu ficasse na frente de casa. Só agora entendo por que fazia isso”, relembra. “Sempre achei que meu pai estava vivo em algum lugar. Escutava o tempo todo que ‘ele foi morto porque era bandido’, mas eu nunca acreditei. Nunca deixei de pensar nele, sempre com a esperança de conhecê-lo”, completa, com os olhos marejados, ao mostrar fotos do dia em que conheceu o Memorial da Democracia de Pernambuco, onde descobriu a verdadeira história do pai. “Quando cheguei, subindo a escada, desabei no choro, porque minha vida inteira escutei que ele era um bandido.”

Apesar de ser pernambucano, Araújo teve forte atuação política no Rio de Janeiro. Foi um dos líderes da Ação Libertadora Nacional e mudou-se para Recife com o objetivo de estruturar a organização no estado. Logo conheceu Maria de Lourdes, com quem se casou e teve dois filhos. “Minha mãe contou ao meu irmão que eles tinham dinheiro, casa, carro, tinham tudo. Meu pai era um trabalhador”, diz Nadja. Nos documentos coletados pela Comissão Estadual da Verdade, Araújo é registrado como agricultor, mas há relatos de que também trabalhou em uma empresa responsável pelo trânsito do Recife, antes de ser executado por agentes do DOI do IV Exército, em 25 de janeiro de 1972, e enterrado clandestinamente.

A revelação é fruto de uma exaustiva investigação pessoal.Agora, ela luta por reparação do Estado

“João Mendes era um dos líderes da ALN, porque a organização nunca deslocava alguém para outro estado se ele não ocupasse um papel de liderança. Foi assim que ele conheceu a esposa no Recife, no contexto de sua integração à sociedade local, e manteve uma longa militância”, explica Amparo Araújo, integrante do Comitê pelo Direito à Memória, Verdade, Justiça e Democracia de Pernambuco. “Quando os arquivos do Dops foram abertos, procurei muito pelos familiares, mas ninguém sabia nem tinha contato com parentes. Não havia nenhum rastro, até porque quem o trouxe para Recife já havia morrido.” Sem conhecer sua própria história, Nadja não foi indenizada pelo Estado brasileiro, pois perdeu o prazo para ser beneficiada pela Lei 9.140, de 1995, que reconhece os crimes do regime e concede indenização às vítimas.

O advogado Marcelo Santa Cruz, irmão de Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974, ingressou com uma ação na CEMDP solicitando a reabertura do caso de Araújo e a reparação devida aos familiares. No processo, ele pede a retificação do atestado de óbito, para que conste não uma morte natural, mas resultado da ação violenta de agentes do Estado. Solicita ainda indenização para Nadja e seu irmão, além de um pedido oficial de desculpas do Estado pelo crime.

Para Eugênia Gonzaga, presidente da comissão, é preciso superar os prazos estabelecidos pela lei para casos como o de Araújo. “Esse prazo é incompatível com políticas de reparação quando se trata de direitos humanos. A própria administração pode aceitar e conceder indenizações nesses novos pedidos. No caso de Nadja, com ainda mais razão, esse prazo não deveria ser aplicado, pois ela só está conhecendo a história agora. É uma situação diferente de todas as outras.”

“A ditadura quase destruiu minha vida. Tive a sorte de contar com uma mulher, esposa do meu tio, que cuidou de mim com amor. Eu não gostava de política, mas, depois que descobri o que fizeram com meu pai, comecei a me interessar e entender essa ditadura nojenta que matou muita gente, destruiu famílias e me deixou com um trauma profundo”, lamenta Nadja. Ela revela que a mãe contou a história do pai ao irmão, mas ele não acreditou, achando que era uma “fantasia” criada por ela, rotulada como louca a vida inteira. Maria de Lourdes morreu no início dos anos 1990. “Quando descobri tudo, fiquei em luto em casa. Chorava muito, ligava para minha família, mas ninguém queria saber. Diziam para ‘deixar pra lá’, que ‘já passou’. Mas essa ferida continua aberta.” •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Verdade desvelada’

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