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O direito penal ambiental é um aliado estratégico na luta contra o aquecimento global, afirma a juíza Rafaela Rosa

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“Atualmente, a delinquência ambiental é a terceira maior do mundo em termos econômicos”, observa a magistrada – Imagem: Douglas Magno/AFP e Paula Carrubba/Enfam
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No fim de julho, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), principal órgão jurídico do sistema das Nações Unidas, reconheceu a responsabilidade dos países de evitar danos ao clima e adotar medidas para enfrentar as mudanças climáticas. “Na visão da Corte, o dever de prevenir danos significativos ao ambiente também se aplica ao sistema climático”, declarou o juiz Yuji Iwasawa ao ler o parecer na sede do órgão, em Haia, nos Países Baixos.

No começo daquele mês, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) já havia afirmado, em resposta a uma consulta dos governos do Chile e da Colômbia, que os Estados têm obrigações jurídicas concretas para proteger o meio ambiente e a integridade das comunidades diante dos impactos das emergências climáticas. “As experiências que vivemos e as contribuições que recebemos demonstram que não há mais margem para a indiferença”, disse a juíza Nancy Hernández López, presidente do tribunal.

Esses avanços podem representar uma virada na responsabilização por crimes ambientais, inclusive no Brasil, avalia a juíza federal Rafaela Rosa, pós-doutora em Direito pela Berkeley School of Law, da Universidade da Califórnia, e autora do livro Dano Climático: Conceito, Pressupostos e Responsabilização (Ed. Tirant Lo Blanch). Em 27 e 29 de agosto, ela falará sobre o tema no 31º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo IBCCrim, em São Paulo. “A ideia é mostrar como o direito penal ambiental pode contribuir mais, especialmente ao tratar a emissão de gases de efeito estufa como a pior forma de poluição e, consequentemente, como crime grave”, diz, em entrevista à repórter Mariana Serafini. “Isso representaria uma mudança significativa, e o Brasil está atrasado em fazer isso.”

CartaCapital: O que é o direito criminal ambiental e por que ouvimos tão pouco sobre isso?
Rafaela Rosa: No Brasil, o direito penal ambiental historicamente tratou a lesão ao meio ambiente como uma externalidade da atividade produtiva, com leis fragmentadas e punições brandas. Mesmo após a Lei 9.605/98, a maioria dos crimes era considerada de menor potencial ofensivo. Isso dificultava a percepção do impacto real e limitava o uso de medidas como bloqueio de contas ou interceptação telefônica. Atualmente, a delinquência ambiental é a terceira maior do mundo em termos econômicos. A demora em oferecer respostas penais mais eficazes explica a baixa efetividade.

CC: O que muda, concretamente, quando Cortes internacionais reconhecem que os Estados devem evitar danos ao clima?
RR: A CIJ e a Corte IDH destacam o dano ao clima como conceito-chave para responsabilizar Estados, empresas e indivíduos. Trata-se de uma dimensão específica do dano ambiental, focada na emissão de gases de efeito estufa e na perda da função de sumidouro de carbono. No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça já regulamentou a valoração do impacto climático em ações ambientais, com protocolos para cálculo de danos em casos de desmatamento e incêndios florestais. Essas decisões internacionais impulsionam o uso desse critério por aqui, dado o dever dos juízes de fazer o controle de convencionalidade (verificar se as leis e os atos normativos internos estão em conformidade com tratados ratificados pelo País). O próximo passo é reconhecer as emissões indevidas como crime de poluição.

“A CIJ e a Corte IDH destacam o dano ao clima como conceito-chave para responsabilizar Estados, empresas e indivíduos”

CC: O desmatamento foi responsável por 46% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa em 2023, segundo o Observatório do Clima. Como esse crime costuma ser investigado e punido?
RR: A responsabilização ainda é pouco efetiva, com poucas condenações definitivas. Mas a aplicação do conceito de dano climático tem mudado isso. O Ministério Público Federal ajuizou cerca de 200 ações contra grandes desmatadores (acima de 60 hectares), pedindo o reconhecimento do dano ao clima. Isso permite obter liminares para bloqueios de bens, embargos de áreas, retirada de gado e suspensão de financiamento logo no início do processo. O Judiciário tem priorizado e acelerado o julgamento dessas ações, especialmente na Amazônia. Houve uma mudança significativa com a publicação do protocolo do Conselho Nacional de Justiça sobre o uso de imagens de satélite e sensoriamento remoto: foram listados sistemas confiáveis e autorizado seu uso como prova direta, sem a exigência de inspeção presencial. Esse entendimento foi reforçado pelo Superior Tribunal de Justiça. Sistemas como o ­PlanetScope, da ­Nasa, fornecem imagens diárias de alta resolução, permitindo o monitoramento detalhado das alterações em cada área. Essas medidas ajudam a superar a resistência judicial anterior e a agilizar os processos contra os grandes infratores.

CC: No ano passado, a senhora declarou ao jornal britânico The Guardian que as penas no Brasil ainda são muito brandas. Acredita que, com essas mudanças, as condenações podem ­tornar-se mais severas?
RR: Sim, mas isso depende do reconhecimento adequado das condutas como crimes. Um avanço essencial seria enquadrar a sequência de delitos, como o desmatamento seguido de pecuária, com a consequente emissão de metano, como crime de poluição somado ao de desmatamento. Isso elevaria o grau de responsabilização, tornando a prática economicamente inviável. Hoje, esses casos são tratados sobretudo na esfera civil. A Constituição prevê a tríplice responsabilização – administrativa, civil e penal – para danos ambientais (art. 225, §3º). É preciso aplicar esse princípio às emissões ilegais.

CC: Qual será o impacto do PL do Licenciamento, aprovado pelo Congresso e sancionado com vetos por Lula?
RR: O texto final ainda é incerto por causa dos vetos, mas a versão aprovada está muito aquém do necessário: nem sequer menciona o clima. Isso contraria as decisões recentes da CIJ e da Corte IDH, que reforçam a obrigação de incluir o impacto climático no processo de licenciamento. Há uma tendência de judicialização, já que o projeto contraria precedentes do STF sobre a progressividade na proteção ambiental. Cabe ao Judiciário atuar de forma contramajoritária para impedir retrocessos. •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Justiça climática’

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