Justiça
Afastar o golpismo militar depende de um novo artigo 142, diz Carlos Fico
Uma eventual revisão da Lei da Anistia também teria força simbólica. Resta saber se o STF recuará de seu apelo ao ‘perdão’ no julgamento original


Para começar a debelar o fantasma do golpismo militar, o Congresso Nacional deveria reescrever ou ao menos regulamentar o artigo 142 da Constituição, a dispor sobre o papel das Forças Armadas. A avaliação é de Carlos Fico, professor de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos principais especialistas sobre a ditadura, em entrevista a CartaCapital.
Fico também é o autor do recém-lançado Utopia autoritária brasileira: Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje (Editora Crítica).
O debate acerca do artigo 142 ganha ainda mais tração com o avanço do processo no Supremo Tribunal Federal sobre a tentativa de golpe de Estado em 2022. A ascensão da extrema-direita nos últimos anos disseminou entre seguidores de Jair Bolsonaro (PL) a interpretação de que esse dispositivo constitucional confere uma espécie de poder moderador aos militares — o que é falso.
Diz o artigo: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
As operações de Garantia da Lei e da Ordem — ou GLO —, por exemplo, já são objeto da Lei Complementar 97, de 1999, e do Decreto 3897. Elas concedem provisoriamente aos militares a faculdade de agir com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade. A decisão de empregar os fardados na GLO é do presidente da República, por iniciativa própria ou dos chefes dos outros Poderes.
“E a garantia dos poderes constitucionais? Ninguém sabe o que é isso”, enfatiza Fico. “Não há uma lei complementar que regulamente essa passagem da Constituição.”
Esse trecho, diz o professor, poderia até ser excluído da Carta Magna. Seria um avanço simbólico, mas com implicações práticas: ele considera os militares “legalistas”, no sentido de que prezam pelos manuais e pelos regulamentos.
“Eles interpretam equivocadamente essa passagem do artigo 142. Por isso teria muita força o Congresso Nacional, por meio de uma emenda constitucional, alterar a redação desse trecho, que é dúbio.”
Não basta o STF decidir, como fez no ano passado, que o artigo não permite qualquer interpretação em prol de uma intervenção militar sobre os Três Poderes. A conclusão da Corte é, por óbvio, correta, mas tem peso reduzido se nos quartéis se perpetua a leitura intervencionista.
Outro avanço no campo simbólico, de acordo com Carlos Fico, seria uma revisão na Lei da Anistia. Em 2014, chegou ao STF uma ação do PSOL para rediscutir a norma, que livrou agentes públicos, militares e civis, de crimes cometidos na ditadura. Em 2010, o Supremo já julgou uma demanda da Ordem dos Advogados do Brasil e concluiu pela validade da lei.
O objetivo da OAB era anular o perdão a agentes do Estado acusados de praticar atos de tortura no regime militar. Por 7 votos a 2, o Supremo negou a solicitação — ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.
Disse o ministro Cezar Peluso, então presidente do STF, no julgamento de 2010: “Só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”.
Agora, com a investigação sobre a trama golpista de 2022 e o sucesso do filme Ainda estou aqui, cresce a pressão para o tribunal voltar a se debruçar sobre o tema. A ação do PSOL tramita sob a relatoria do ministro Dias Toffoli.
“Com o filme e com essas iniciativas golpistas, poderia haver clima para uma rediscussão e, quem sabe, a constituição de uma maioria reinterpretando”, diz Fico. “Torço para que haja, mas sou muito cético em relação a isso.”
Há, no entanto, sinais de abertura no tribunal. No fim de 2024, por exemplo, o ministro Flávio Dino avaliou que a Corte deve discutir se a Lei da Anistia se aplica a crimes que começaram na ditadura mas cujos efeitos se prolongam até o presente. São os chamados crimes permanentes.
A sugestão do ministro ocorreu no âmbito de um recurso sobre crimes praticados durante a Guerrilha do Araguaia, como o homicídio cometido por Lício Augusto Ribeiro Maciel e a ocultação de cadáver executada por Sebastião Curió, ambos militares do Exército.
Dino esclareceu que o objetivo não é rediscutir a decisão do STF sobre a Lei da Anistia, mas ponderou que, por se tratar de um crime permanente, a ocultação de cadáver continua em execução.
“A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”, resumiu.
Os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes também movimentaram processos relacionados a crimes da ditadura.
Resta saber se o STF aproveitará os ventos favoráveis a um novo debate sobre a Lei da Anistia ou, a exemplo do que fez na votação de 15 anos atrás, defenderá apenas a necessidade de “perdoar”, em nome de uma suposta pacificação.
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