Justiça
Por todos os poros
O audacioso ataque do PCC no aeroporto de Guarulhos evidencia o despreparo do Estado para frear a metástase do crime organizado


Parecia a sequência de um filme sobre a máfia ou um dia comum no México, mas aconteceu, em plena luz do dia, na principal porta de entrada internacional do Brasil. Captado pelas câmeras de segurança do Aeroporto Internacional de Guarulhos, o assassinato do empresário Antônio Vinicius Lopes Gritzbach, em um momento de grande circulação de passageiros, chocou não somente por sua audácia, mas também por unir em um único episódio diversos elementos que não deixam dúvida a respeito da infiltração do crime organizado nas estruturas. Por trás dos dez disparos de fuzil que atingiram a cabeça e o abdome de Gritzbach desenrola-se um esquema de lavagem de dinheiro em larga escala, infiltração na economia formal e cooptação de agentes do Estado.
Embora os dois atiradores ainda não tenham sido identificados, o crime, de uma forma ou de outra, está ligado ao Primeiro Comando da Capital. Após alguns anos de serviços prestados para a maior organização criminosa do Brasil, onde se especializou em lavar dinheiro oriundo do tráfico de drogas e outras atividades ilegais por meio de aquisições de imóveis e criptomoedas, Gritzbach estava na mira do PCC desde 2021, após sumir com 100 milhões de reais repassados por Anselmo Santa Fausta, conhecido como Cara Preta e um dos líderes da facção. No mesmo ano, Cara Preta e um comparsa foram assassinados em uma ação ordenada pelo laranja, segundo denúncia do Ministério Público de São Paulo. Após ter sido sequestrado e torturado por integrantes do PCC e libertado sob a promessa de devolver o dinheiro, Gritzbach firmou em março um acordo de delação premiada com o MP, no qual prometeu revelar novos esquemas de lavagem de dinheiro no mercado imobiliário e com empresários de futebol, além dos nomes de policiais envolvidos com a organização. As provas nunca foram completamente apresentadas e a delação não chegou a ser concluída e homologada, mas o empresário apresentou uma gravação na qual um advogado supostamente ligado ao PCC oferece uma recompensa de 3 milhões de reais por sua cabeça.
Talvez por não confiar na polícia, o “empresário” recusou a proteção do Estado e preferiu contratar por conta própria quatro policiais militares como seguranças. Em uma coincidência sob investigação, três dos seus guarda-costas não estavam presentes no momento do assassinato, depois de o carro que os conduzia ao aeroporto ter apresentado uma pane. Todos os policiais envolvidos na escolta tiveram os celulares apreendidos.
O governo Lula ainda não tirou do papel seu plano para combater o crime organizado
Outro detalhe: o crime aconteceu ao lado do ônibus estacionado que serve como base para a Guarda Municipal na área de desembarque do aeroporto. Sempre ocupado por ao menos três agentes, o ônibus estava completamente vazio, fato que também causa estranheza aos investigadores. Para completar, Gritzbach, segundo o depoimento de familiares, teria ido a Maceió “cobrar dívidas” de sócios. Com seu cadáver foi achado um estojo com joias avaliadas em 1 milhão de reais. Oito dias antes de morrer, o empresário denunciou à Corregedoria da Polícia Civil ter sido extorquido por agentes. A ligação entre todos esses fatos ainda precisa ser elucidada. “Não descartamos o envolvimento de ninguém no crime. A vítima delatou muitos policiais civis”, afirma Guilherme Derrite, secretário de Segurança Pública de São Paulo, cujo desempenho repete um padrão de governos anteriores: alta letalidade e intimidação de familiares de vítimas inocentes, como denuncia o ouvidor das polícias do estado, Cláudio Aparecido da Silva, em entrevista à página 16, e incapacidade de conter a violência das facções.
Os números envolvidos no assassinato em Guarulhos são superlativos, mas não é de se estranhar. Segundo estimativa do Ministério Público, possivelmente subestimada, o PCC fatura 1 bilhão de dólares por ano. Muito além do tráfico de drogas e outros crimes que geram a receita original da facção, o dinheiro agora circula até mesmo fora do País em uma miríade de negócios ilegais ou de fachada legal e se estendem por especulação imobiliária, venda de veículos de luxo, patrocínios, adulteração de combustíveis, apostas e concessão de serviços públicos, caso das empresas de ônibus Transwolff e UPBus, responsáveis pelo transporte de 700 mil passageiros na capital e investigadas por lavar dinheiro da organização. Antes de cair em desgraça com a cúpula do crime, Gritzbach era o principal operador do esquema de aquisição de imóveis de luxo no bairro paulistano do Tatuapé. Por suas mãos passaram milhões de reais.
O PCC não é, porém, a única organização criminosa a desafiar o Estado. Outra facção que ganhou contornos nacionais e internacionais nos últimos anos é o carioca Comando Vermelho. No âmbito estadual, o grupo dedica-se a uma duradoura e sangrenta guerra por controle territorial contra milicianos e traficantes do rival Terceiro Comando Puro (TCP), mas tem expandido suas rotas de envio de cocaína para a Europa e suas atividades na Amazônia, como garimpo ilegal e tráfico de madeira e animais silvestres. Não há estimativa oficial do faturamento do CV. Segundo a Polícia Civil, apenas os pontos de venda de drogas e outras atividades criminosas na Favela da Rocinha, a maior do Rio de Janeiro, arrecadam 12 milhões de reais por mês.
No Rio, a guerra se acentua. Na Amazônia, narcotraficantes se unem a garimpeiros. Em São Paulo, o PCC controla frotas de ônibus – Imagem: Ibama/PF, Redes Sociais e PMERJ/GOVRJ
De acordo com o documento Cartografias da Violência na Amazônia, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, além de PCC e CV, ao menos outras 20 facções menores controlam total ou parcialmente cidades que concentram 59% da população da região. A expansão do crime organizado também é sentida em metrópoles nordestinas, entre elas Salvador, Recife e Fortaleza, onde a presença das quadrilhas repete a realidade e o modus operandi de Rio e São Paulo. Com ou sem filiação ao PCC ou ao CV, os grupos criminosos se multiplicam. “Temos mais de 80 organizações criminosas espalhadas em todos os estados federados e no Distrito Federal”, contabiliza Benedito Mariano, ex-presidente do Conselho Nacional de Gestores e Secretários Municipais de Segurança e coordenador da área de segurança pública na campanha de Guilherme Boulos à prefeitura da capital paulista.
O crime organizado, ressalta Mariano, há muito tempo mudou de patamar no Brasil. “O que não mudou é o enfrentamento a essa criminalidade, incluindo as milícias, por parte dos estados ou da União.” A opinião é compartilhada pelo sociólogo Ignacio Cano, especialista em segurança pública. “Podemos falar em mudança de patamar em razão da expansão das facções paulistas e cariocas para o Norte e Nordeste, o que já acontece há alguns anos. Elas se constituíram em grupos nacionais, quando historicamente eram grupos regionais.” O governo Lula, considera Cano, até agora tem sido muito tímido. “Fez aquela ação em portos e aeroportos, cujo resultado foi pífio. Para enfrentar o crime organizado, precisamos não de militares nas fronteiras, mas de investigação e de forças-tarefa.”
Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum de Segurança Pública, avalia que o cenário no Brasil encontra-se em um patamar parecido com o de países como o México, onde o crime organizado tem se infiltrado e contaminado segmentos importantes da sociedade, por meio do controle territorial de regiões, comunidades e rotas, assim como atividades de vários setores da economia: “Ele está altamente imbricado na economia formal. Ainda não temos noção do tamanho disso, mas sabemos que é considerável e começa a afetar a sustentabilidade econômica do País, gerando uma série de custos diretos e indiretos que fazem com que o Brasil perca competitividade e capacidade de liderar a discussão sobre desenvolvimento socioambiental”.
Governadores relutam em aceitar diretrizes de observância obrigatória vindas da União – Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil
O governo federal tenta avançar. Em 1º de novembro, o presidente Lula e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, apresentaram aos governadores os principais pontos da PEC da Segurança Pública a ser anunciada em breve. As medidas visam diretamente o combate às organizações criminosas, a começar pela transformação da Polícia Rodoviária Federal em Polícia Ostensiva da União, com atuação estendida a hidrovias e ferrovias e autorização para realizar policiamento ostensivo para a proteção de bens, serviços e instalações. Outra sugestão é ampliar o escopo de atuação da Polícia Federal em casos de crimes de repercussão interestadual e internacional, e contra a ordem política e social.
Um ponto considerado fundamental pelo governo é a inclusão na Constituição do Sistema Único de Segurança Pública, aprovado em 2018 por lei ordinária, mas jamais colocado em prática. Segundo a proposta, o funcionamento do Susp será viabilizado por um fundo setorial voltado a equipar as polícias e fortalecer os sistemas de inteligência. Outra medida prevista para aumentar a interação entre as três esferas de governo é a ativação do Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, com representantes federais, estaduais e municipais. A ideia de controle por parte do governo federal incomodou, no entanto, governadores de oposição, embora a proposta tenha nascido no governo de Michel Temer, de quem eram aliados ou simpatizantes. “Nenhum governo estadual vai concordar com diretrizes de observância obrigatória vindas da União, seria uma interferência”, bradou Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, o chefe de Derrite.
No momento, a PEC está sob os cuidados do ministro da Casa Civil, Rui Costa, não exatamente um entusiasta da proposta elaborada pelo colega Lewandowski. Costa pediu a realização de um levantamento de todos os projetos de lei sobre o tema que tramitam nas Assembleias Legislativas. “A contribuição dos governadores permitirá uma série de ações conjuntas”, espargiu o ministro, uma boa e velha tática para empurrar a discussão para as calendas. O objetivo da PEC, insiste Lewandowski, “não é invadir a competência dos estados”, mas dar mais segurança jurídica ao trabalho das polícias ligadas ao governo federal. O ex-juiz do Supremo pede pressa, nomeado por Lula justamente com a promessa de apresentar um plano de segurança pública, sobretudo em relação ao combate à lavagem de dinheiro. “O crime organizado está migrando da ilegalidade para a legalidade. A criminalidade mudou sua natureza e é preciso que nos atualizemos.”
A transformação da PRF em Polícia Ostensiva da União é vista com desconfiança por especialistas
Secretário nacional de Segurança Pública, Mário Sarrubbo afirma que a aprovação da PEC será um marco da unificação e coordenação das políticas de segurança em âmbito nacional, sempre com respeito à autonomia dos entes federados. “Poderemos criar um banco de dados nacional abrangente para monitorar criminosos ligados a facções, o que proporcionará um fluxo de informações acessível e confiável de Norte a Sul”, exemplificou. “Além disso, o governo federal poderá elaborar, em conjunto com estados e municípios, diretrizes para um plano mais coeso e com sistemas de dados que falem a mesma língua. Isso representa um grande passo para uma atuação integrada e ágil no enfrentamento às organizações criminosas.”
No Ministério, Sarrubbo é o responsável pela coordenação de outra medida muito aguardada pelo governo, o projeto de Lei Antimáfia inspirado na legislação italiana. “Estamos em fase essencial de preparação. Duas reuniões virtuais ocorreram, e planejamos um encontro presencial em Brasília ainda em novembro. Esse processo de formulação é crucial, pois permite integrar as melhores práticas e orientações para enfrentar o crime organizado de maneira robusta e eficaz”, diz. A ideia é consolidar uma “proposta sólida” antes de enviá-la ao Congresso: “Isso reforça o compromisso do Ministério da Justiça com uma legislação prática, abrangente e capaz de combater a criminalidade organizada”.
O fortalecimento do Susp, acredita Mariano, é uma medida indispensável. “Sou favorável a estabelecer na Constituição que cabe à União a responsabilidade pela política nacional de segurança pública. Essa é a parte mais importante da PEC”, avalia. Para Lima, quando a PEC fala em revisão do pacto federativo, isso não significa invadir competências, mas “reorganizar a forma como o Estado responde aos desafios do crime organizado”. Resposta que, observa o sociólogo, tem sido obsoleta e analógica. “Os desafios agora dão-se em uma velocidade muito grande. São digitais, transfronteiriços, com organizações que desafiam a própria ideia de se sustentar à base somente do controle de território.” A PEC, acrescenta, é positiva porque foca em governança e coordenação. “Claro que o conteúdo pode e deve ser melhorado, mas a proposta tira o foco de ir atrás do crime depois que ele acontece. Quando organiza e melhora o time, você previne e evita que o crime aconteça.”
Ricardo Lewandowski acerta ao tentar incluir o Susp na Constituição, avalia Benedito Mariano – Imagem: Igor Cotrim/Prefeitura de Diadema e Everton Ubal/MJSP
Apesar dos elogios, Mariano diz sentir falta na proposta de alguns temas estruturais, entre eles a exclusão das polícias militares como forças auxiliares e reservas do Exército, a revisão do inquérito policial no Brasil, que não é feita desde 1871, e o estabelecimento do ciclo completo da atividade policial na Constituição. Mariano afirma ainda ter “muitas dúvidas” sobre o impacto da transformação das atribuições da Polícia Rodoviária Federal. “Nas poucas vezes em que a PRF atuou como polícia ostensiva, houve ocorrências desastrosas. Não acho que haja ali um perfil para ser Polícia Ostensiva da União.” O especialista propõe a criação de uma Guarda Nacional Civil, com concurso público, órgão corregedor, código de conduta e hierarquia adequada. “A guarda atuaria contra a grilagem de terra, e na defesa das fronteiras e dos povos indígenas, e, quando solicitada, apoiaria os estados. Isso levaria gradativamente à diminuição das GLOs das Forças Armadas, que têm custo elevado e são ineficientes.”
Para tornar realidade a parceria entre os diversos governos na área de segurança pública, afirma Cano, falta colocar em prática o Susp. “O Sistema Único existe na lei há anos, mas é só uma teoria que não funciona porque não há uma coordenação. A PEC é uma tentativa de colocar o governo federal numa posição de maior envolvimento e, ao mesmo tempo, criar a possibilidade de pautar e direcionar as políticas dos estados. Aí tem um quiproquó, mas o governo federal pode homogeneizar determinadas pautas e ao mesmo tempo auxiliar os governos estaduais. Isso seria um ganho para todos.” O especialista elenca outras tarefas: “O crime organizado tem infiltração no aparato do Estado. Então, é preciso investigar quem no aparato do Estado está trabalhando com o crime organizado”. O sociólogo lembra que a criminalidade não se resume ao “PCC ou ao CV” e acredita que a União tem o dever de combater todos os tipos de atividade, mas deve priorizar a redução imediata da violência. “Para isso, precisamos de investigação e de policiais federais que, com o apoio de alguns profissionais escolhidos nos aparatos estaduais, consigam investigar a infiltração das organizações. Isso é o mais importante, o resto é perfumaria. Colocar militares nos portos e aeroportos é só uma tentativa de mostrar que se está preocupado e tenta-se fazer alguma coisa. Certamente não vai desarticular nenhuma rede criminosa.”
O México e a Colômbia são bons casos de estudo, se quisermos entender as consequências deletérias de uma persistente negligência do Poder Público. •
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Por todos os poros’
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