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Litigância abusiva

O CNJ acerta ao propor parâmetros para identificar e coibir a advocacia predatória, mas também deveria dar atenção ao lawfare, igualmente nocivo

Litigância abusiva
Litigância abusiva
Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal - STF. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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O Conselho Nacional de Justiça aprovou, recentemente, uma proposta de recomendação apresentada pelo seu presidente, o ministro Luís Roberto Barroso, e pelo Corregedor Nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, com parâmetros para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva ou predatória. De fato, a instrumentalização do Judiciário para fins de obter, ao contrário da adequada prestação jurisdicional, efeitos extrajurídicos e extraprocessuais é um problema que deve ser enfrentado e combatido. E, nessa categoria, também se enquadra o lawfare.

Em primeiro lugar, o estudo do lawfare ganhou, no Brasil, relevantes contribuições científicas por parte do então advogado e atual ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin Martins, de Valeska Teixeira Zanin e de Rafael Valim, os quais produziram, seguramente, uma das mais relevantes produções científicas nacionais no tema, a obra Lawfare: Uma Introdução (Editora Contracorrente).

Ao constatarem a insuficiência da clássica dogmática jurídica, bem como das teorias do abuso de direito e de autoridade, para responder aos desafios impostos pela manipulação do Direito nos moldes capitaneados, em especial, pela vulgarmente conhecida Operação Lava Jato, os autores debruçaram-se, dentre outras, nas pesquisas realizadas por ­Orde F. Kittrie, John L. ­Comaroff, Jean Comaroff, Siri Gloppens e David ­Kennedy para, a partir delas, conceituarem o lawfare como “o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo”.

Com efeito, desde que o general norte-americano Charles J. Dunlap Jr., em 2001, resgatou o termo para apontar o uso do Direito Internacional dos Direitos Humanos como arma de guerra, o tema foi objeto de tratamento científico por John Comaroff e Jean ­Comaroff, os quais qualificaram o lawfare como o uso do Direito para fins de coerção política, por Orde F. Kittrie, autor que destacou os efeitos similares à guerra convencional de neutralização de adversários e, ainda, por Siri Gloppen, a definir o fenômeno como a estratégia jurídica voltada para além do mero êxito processual.

Assim como o lawfare, a litigância predatória captura o Judiciário de forma ilegítima, razão pela qual o fenômeno deve, seguramente, ser estudado e combatido. Manifestações de exercício abusivo do direito de acesso ao Judiciário causam efeitos nefastos para a Justiça, bem como para a efetiva e célere prestação jurisdicional e, em escala mais ampla, para o próprio sistema de proteção de direitos.

Nossa Constituição prevê, no seu artigo 5º, inciso XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, disposição da qual emerge o chamado princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Entretanto, é inegável que o direito de acesso ao Judiciário, assim como qualquer outro direito, não pode ser exercido de forma abusiva ou com desvio de finalidade. Se a provocação do Judiciário não visa tutelar direito legítimo, mas alcançar objetivos diversos, a prática não apenas contribui para ilícitos em geral, mas compromete a própria integridade da jurisdição e a adequada prestação jurisdicional.

É por essas razões que a advocacia abusiva foi conceituada pelo Conselho Nacional de Justiça como “o desvio ou manifesto excesso dos limites impostos pela finalidade social, jurídica, política ­

e/ou econômica do direito de acesso ao Poder Judiciário, inclusive no polo passivo, comprometendo a capacidade de prestação jurisdicional e o acesso à Justiça”.

Assim considerando, é elogiosa a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça. Entretanto, acreditamos que a recomendação poderia ser objeto de maior debate social, bem como da inclusão de outras relevantes instâncias de debate público, tais como a Ordem dos Advogados do Brasil.

Não deve o Conselho Nacional de Justiça, no exercício de suas relevantes missões constitucionais relativas ao controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, tolher as atribuições, igualmente de alçada constitucional, da advocacia. Não podemos admitir qualquer prejuízo para o pleno exercício da advocacia e para a defesa de direitos. Realizadas referidas ressalvas, é absolutamente elogiosa a iniciativa, a qual pode vir acompanhada de medidas relativas à identificação e ao controle do lawfare, matéria igualmente relevante para a tutela do sistema de proteção de direitos. •

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Litigância abusiva’

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