Artigo
A ciência por trás das bets: como as apostas esportivas afetam o cérebro
Propagação da modalidade no Brasil tem levado a problemas socioeconômicos e merece atenção redobrada de neurocientistas



As apostas esportivas, ou populares bets, vem crescendo no Brasil de forma preocupante, e essa é uma questão não apenas social, mas também científica. Os jogos eletrônicos e seus efeitos no cérebro chamam a atenção da neurociência desde os anos 1980, mas só em 1992 surgiu o primeiro estudo mais objetivo sobre o assunto.
A pesquisa investigou o padrão de atividade cerebral de praticantes do jogo Tetris com o uso da tomografia por emissão de pósitrons (PET-scan)[1]. Os autores descreveram uma redução significativa de atividade cerebral de áreas responsáveis pelo controle visuoespacial à medida que a aprendizagem do jogo se consolidava. Ou seja, quanto mais experiente era o praticante, menor era o recrutamento de uma extensa área cerebral.
Esse efeito associado à prática contínua do jogo foi interpretado como uma adaptação de circuitos. De início, o cérebro tenta lançar mão de diferentes estratégias, exigindo uma enorme atividade inicial que vai diminuindo à medida que as táticas vão ganhando outros domínios de cognição, demandando menor envolvimento da área que abriga os circuitos de tomada de decisão (o córtex pré-frontal). Estabelece-se, assim, um automatismo em detrimento de uma avaliação mais analítica das situações apresentadas pela tarefa do jogo.
Estudos recentes mostram ainda que a regulação neuroquímica dos processos de tomada de decisão fica comprometida quando os jogadores são expostos a pistas associadas à vitória que, via de regra, ativam os famosos circuitos cerebrais de recompensa[2,3]. E esse tipo de pista é comumente observado em plataformas de bets.
As promessas de ganho imediato, juntamente com as iscas lançadas na forma de bônus de boas-vindas, acentuam este cenário. Somado a isso, temos uma cultura que valoriza ao extremo o futebol, idolatra times e atletas, reforçando um pensamento afeito a tradições de devoção.
As empresas de apostas se valem desse fenômeno cultural para aplicar uma lógica parecida de fidelidade às suas plataformas, criando identificação com determinados clubes e, consequentemente, com seus torcedores/clientes. Além disso, muitos torcedores se consideram profundos conhecedores do esporte e dos percalços vividos por seus times de coração, o que os torna presas fáceis e pouco críticas a esse mecanismo de aprisionamento comportamental.
O resultado parece ser cada vez mais nefasto. Vemos um fenômeno que se escala em proporção semelhante à paixão do brasileiro pelo futebol. Segundo levantamento recente feito pelo Itaú, os brasileiros perderam R$ 23,9 bilhões em apostas esportivas entre junho de 2023 e junho de 2024, com impacto principalmente sobre os mais pobres.
As consequências socioeconômicas estão crescendo tão rapidamente que o Governo Federal se apressa para conter as empresas não legalizadas e restringir o uso de recursos oriundos de benefícios federais para o pagamentos de apostas.
Nem mesmo nas populares loterias há um comprometimento financeiro tão extenso e instantâneo como o visto com as bets. Por que parece ser tão difícil, conscientemente, frear o impulso de continuar apostando? Por que as pessoas continuam perdendo, sistematicamente, seus salários, suas posses, em nome de uma expectativa financeira fantasiosa que logicamente só favorece a banca?
Para conseguirmos responder a essas perguntas temos que abordar o que a neurociência nos ensina quanto aos efeitos de promoção de comportamentos de risco. E aqui vale falar de um tipo muito particular de neurotransmissão que tem na dopamina sua protagonista. Essa molécula é produzida em grande quantidade por determinados neurônios localizados em regiões cerebrais associadas a várias funções fisiológicas, dentre elas, os sentimentos de recompensa e bem-estar.
Estudos em modelos animais mostram que há um intenso engajamento comportamental quando eles são expostos a uma tarefa que apresenta pistas associadas a uma recompensa. Essas pistas proporcionam um efeito reforçador sobre o engajamento comportamental, fortalecendo a procura pelo estímulo a ele condicionado (recompensa).
Esse é um exemplo de condicionamento clássico pavloviano e sua explicação neurobiológica recai sobre os mesmos circuitos dopaminérgicos de recompensa modulados por agentes psicoestimulantes como a anfetamina[4] ou cocaína[5].
Considerando que as plataformas de apostas proporcionam uma exposição excessiva a pistas associadas à vitória, constrói-se um contexto favorável para os apostadores assumirem riscos.
A liberação exacerbada de dopamina pelo neurônios, aliada a uma menor atividade de áreas do córtex pré-frontal, proporciona um substrato para a impulsividade e a compulsividade[6]. O cenário se torna ainda mais complexo se o jogador for usuário de substâncias psicoestimulantes, tornando os efeitos comportamentais ainda mais devastadores.
Tendo em vista a elevada capacidade econômica das bets e o proporcional grau de infiltração de suas propagandas em todas as plataformas eletrônicas de entretenimento, é praticamente impossível escapar das pistas associadas à vitória que elas apresentam.
Podemos dizer que há um verdadeiro assédio sensorial buscando o convencimento de mais e mais pessoas a se tornarem apostadoras compulsivas. Esse bombardeamento informacional pode muito bem ser capaz de produzir efeitos a longo prazo na população alvo, com consequências importantes não só no bolso dos apostadores mas também nos circuitos cerebrais associados aos processos de tomada de decisão.
A ciência precisa se debruçar com cada vez mais atenção a esses efeitos, e as autoridades competentes devem tomar decisões fortes e assertivas para que se evitem consequências crônicas, para além das econômicas em nossa sociedade.
[1] Richard J. Haier, R. J., Benjamin V. Siegel Jr., Andrew MacLachlan, Eric Soderling, Stephen Lottenberg and Monte S. Buchsbaum. Regional glucose metabolic changes after learning a complex visuospatial/motor task: a positron emission tomographic study. Brain Research, 570 (1992): 134-143.
[2] Adams WK, Barkus C, Ferland JM, Sharp T, Winstanley CA. Pharmacological evidence that 5-HT2C receptor blockade selectively improves decision making when rewards are paired with audiovisual cues in a rat gambling task. Psychopharmacology (Berl) 234 (2017): 3091-3104.
[3] Betts GD, Hynes TJ, Winstanley CA. Pharmacological evidence of a cholinergic contribution to elevated impulsivity and risky decision making caused by adding win-paired cues to a rat gambling task. J Psychopharmacol 35 (2021):701–712.
[4] Zack M, Zack M, Featherstone R, Mathewson S, Fletcher P. Chronic exposure to a gambling-like schedule of reward predictive stimuli can promote sensitization to amphetamine in rats. Front Behav Neurosci (2014) 8:36.
[5] Ferland JM, Hynes TJ, Hounjet CD, Lindenbach D, Haar CV, Adams WK, Phillips AG, Winstanley CA. Prior exposure to salient win-paired cues in a rat gambling task increases sensitivity to cocaine self-administration and suppresses dopamine efflux in nucleus accumbens: support for the reward deficiency hypothesis of addiction. J Neurosci (2019) 39: 1842-1854.
[6] Leili Mortazavi, Tristan J. Hynes, Chloe S. Chernoff, Shrishti Ramaiah, Hannah G. Brodie, Brittney Russell, Brett A. Hathaway, Sukhbir Kaur, and Catharine A. Winstanley. D2/3 Agonist during Learning Potentiates Cued Risky Choice. The Journal of Neuroscience (2023) 43(6): 979–992.
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