Política
Na penumbra
Em busca do comando do Senado, Davi Alcolumbre negocia uma aliança tática com o bolsonarismo


Imagine uma cidade com um estádio de futebol capaz de receber 38% da população. Ela existe. É Tartarugalzinho, de 12,9 mil habitantes, no Amapá. Em junho, a prefeitura inaugurou uma “arena” para 5 mil torcedores. Custou 7,6 milhões de reais, metade paga com recursos do orçamento federal obtidos por um senador amapaense, Davi Alcolumbre. O prefeito Bruno Mineiro é seu aliado. Elegeu-se em 2020 pelo DEM, o partido de Alcolumbre à época, e tenta a reeleição pelo União Brasil, lar atual do senador e sucessor do DEM. Tartarugalzinho é campeã per capita de verba de emendas parlamentares. De 2020 a 2023, ministérios em Brasília comprometeram-se a liberar ao município 87 milhões de reais, o equivalente a 6,7 milhões por habitante.
O Amapá tem mais quatro municípios na lista dos dez mais agraciados por emendas, ranking recém-preparado pela Controladoria-Geral da União a pedido de Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal. É a prova da força de Alcolumbre em Brasília, presidente do Senado em 2019 e 2020, tempos em que contribuiu para a arquitetura jurídica da farra das emendas. Fez de Rodrigo Pacheco seu sucessor em 2021 e quer voltar ao posto em 2025. “É uma tragédia”, define um senador lulista, sobre a ambição do colega. Alcolumbre, segundo essa fonte, criou problemas para o governo e o STF e tem acordos de bastidor com o bolsonarismo para criar mais. Acertos destinados a reforçar sua campanha de volta ao comando do Senado, não só em 2025, mas também em 2027, primeiro ano do próximo governo.
Comenta-se no Congresso que Alcolumbre topa facilitar a aprovação da lei da anistia para os golpistas do 8 de Janeiro de 2023, caso seja aprovada pelos deputados. A anistia é uma bandeira dos bolsonaristas, que tentaram, em vão, votá-la na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na terça-feira 10, na última semana de trabalho dos parlamentares antes da eleição municipal de outubro. A extrema-direita condiciona à aprovação da lei o apoio na disputa pelas presidências da Câmara e do Senado em fevereiro de 2025. “É uma das pautas mais importantes da direita, se não for a principal”, repete o deputado que cuida do projeto na Câmara, o sergipano Rodrigo Valadares, do União Brasil, sigla de Alcolumbre. A Procuradoria-Geral da República denunciou 1.644 envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro, dos quais 227 foram julgados e condenados pelo Supremo. Jair Bolsonaro tem tudo para fazer companhia a essa turma. “A anistia não é uma agenda só contra o governo, é contra o Supremo”, teoriza um deputado líder partidário.
O amapaense topa atuar como títere na guerra aberta contra o STF
Mais do que a Câmara, é o Senado que pode encurralar a Corte. Cabe aos senadores abrir um processo de impeachment contra um juiz do STF. A oposição quer a cabeça de Alexandre de Moraes, relator de inquéritos contra Bolsonaro. Na terça-feira 10, apresentou um pedido de cassação do magistrado no qual propõe praticamente um processo criminal comum. Solicita buscas em endereços de Moraes, apreensão de telefones e computadores e a quebra de sigilos comunicacionais. Mostra interesse especial em conversas do ministro com três personagens: os juízes Airton Vieira, que trabalha com o juiz no STF, e Marco Antonio Vargas, ex-colaborador no Tribunal Superior Eleitoral, e o perito computacional Eduardo Tagliaferro, outro ex-colaborador do TSE. Em agosto, a Folha de S. Paulo noticiou a existência de mensagens trocadas pelo trio e interpretou-as como pistas de comportamento judicial “fora do rito” de Moraes.
Para salvar a pele de Bolsonaro, a oposição busca devassar a vida do juiz e do delegado federal Fabio Shor, responsável pelos inquéritos das joias, dos cartões de vacina, da tentativa de golpe de 8 de janeiro e das milícias digitais. Em 2 de abril, a PF mandou ao STF informações de uma investigação a respeito das bisbilhotagens que certos agentes públicos fizeram contra aqueles que o bolsonarismo tenta intimidar. A bisbilhotagem é uma das razões para Moraes ter banido o ex-Twitter do Brasil. O magistrado entendeu que a rede social de Elon Musk estava a serviço da devassa. Por meio da plataforma, os arapongas exporiam a intimidade de Shor e outros policiais. “A investigação demonstrou a participação criminosa e organizada de inúmeras pessoas para ameaçar e coagir delegados federais que atuam ou atuaram nos procedimentos investigatórios contra milícias digitais e a tentativa de golpe de Estado”, descreve a decisão que baniu o X.
Pacheco não parece disposto a dar andamento ao impeachment do juiz. E Alcolumbre, caso assuma a presidência da Casa? A aliança do amapaense com o bolsonarismo pariu no Senado, em 2023, uma agenda anti-Supremo. Tudo feito a partir da Comissão de Constituição e Justiça, comandada pelo amapaense. Entre elas, a mudança na Constituição que retira poderes dos juízes do tribunal. Estava adormecida na Câmara até Arthur Lira, o presidente da Casa, enfurecido com o cerco do STF às emendas parlamentares, botá-la para andar. Os bolsonaristas queriam votá-la numa comissão nos últimos dias, mas não conseguiram.
Ambição. Alcolumbre almeja cumprir dois mandatos na presidência do Senado – Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Alcolumbre também jogou água no moinho da oposição. Permitiu o avanço da convocação de um plebiscito sobre aborto e deixou-a aos cuidados de um colega evangélico, Magno Malta, do PL capixaba. E deu o pontapé inicial na criminalização da posse de drogas. Os senadores aprovaram-na em abril e, desde então, o tema está na Câmara. Ao passar pelo crivo inicial dos deputados em uma comissão, recebeu sinal verde, com base em parecer de Ricardo Salles, do PL paulista. O que o bolsonarismo acha de o ídolo Donald Trump ter dado apoio público, na segunda-feira 9, à liberação da maconha na Flórida, com o argumento de que “é hora de acabar com prisões e encarceramentos desnecessários de adultos por pequenas quantidades de maconha para uso pessoal”?
A oposição bolsonarista tem as vagas de senadores em 2026 como prioridade total. “A coisa mais importante da vida do Bolsonaro é a eleição do Senado”, disse em junho, ao jornal Valor, o senador Ciro Nogueira, ex-ministro da Casa Civil do capitão. O bolsonarismo sonha em usar a casa como bunker contra o Supremo. Flávio Bolsonaro deve tentar a reeleição pelo Rio de Janeiro. O irmão Eduardo, deputado, é um nome para concorrer por São Paulo. Michele, a madrasta da dupla, é cogitada, falta saber o estado.
Seria apenas coincidência que, diante desse pano de fundo, o Supremo tenha, sem alarde, feito mover um embaraço criminal para Alcolumbre? Tramita na Corte, em sigilo, uma acusação de confisco de parte do salário de funcionários do gabinete no Senado. Ou seja, de “peculato”, crime de um agente público que embolsa bens ou valores dos quais deveria cuidar. No popular, “rachadinha”, termo consagrado graças a Flávio Bolsonaro.
Corre no Supremo, em sigilo, uma investigação sobre “rachadinhas” no gabinete de Alcolumbre
A acusação a Alcolumbre chegou ao Supremo em maio de 2022. Sete meses antes, despontara na mídia. O amapaense, segundo a Veja, teria se apropriado de 2 milhões de reais entre 2016 e 2021. No STF, o caso foi entregue a Rosa Weber. A juíza aposentou-se em setembro de 2023. Dino herdou os processos, ao tomar posse em fevereiro de 2024. Entre a aposentadoria e a posse, a acusação não ficou parada. Edson Fachin, relator provisório com base nas regras internas do tribunal, assinou um despacho e duas decisões. O primeiro foi em 1º de dezembro do ano passado, dia da posse de Paulo Gonet como procurador-geral da República, para quem o processo foi enviado naquele momento. Uma das decisões foi em 20 de dezembro, último dia de trabalho do STF antes das férias. A outra, em 14 de fevereiro de 2024, a Quarta-Feira de Cinzas. Detalhe: Fachin será o próximo presidente do STF.
Independentemente das “rachadinhas”, “o Supremo tem toda a ficha dele (Alcolumbre) no orçamento secreto”, diz aquele lulista que vê uma “tragédia” na volta do amapaense ao comando do Senado. O “orçamento secreto” é um capítulo da história iniciada em 2015 de apropriação crescente de verbas orçamentárias pelo Congresso. Naquele ano, os parlamentares puseram na Constituição que o governo estava obrigado a liberar dinheiro para obras inseridas individualmente por deputados e senadores no orçamento. Como presidente do Senado em 2019, Alcolumbre liderou a aprovação da obrigatoriedade no caso de emendas coletivas e deu andamento à criação das “emendas Pix”. Tudo somado, surgiu o “orçamento secreto”. De 2019 para 2020, o bolo das emendas cresceu de 13 bilhões para 36 bilhões de reais, dos quais 20 bilhões de “orçamento secreto” puro-sangue.
Esgrima. A Câmara adiou a votação da anistia aos golpistas. O Supremo continua de olho no orçamento secreto – Imagem: Arquivo/STF e Arquivo/Agência Câmara
Em agosto, Flávio Dino tomou providências para fazer valer um julgamento de dezembro de 2022 do STF que decretara a morte do “orçamento secreto”. E contra a farra e o gigantismo das emendas. Foi quando requisitou à CGU um relatório sobre as cidades mais agraciadas com emendas de dois tipos específicos: as RP 9, que são o “orçamento secreto” puro-sangue, e as RP 8, usadas pelos congressistas para driblar o Supremo. Para a CGU, os dois tipos padecem dos mesmos males. Falta de transparência quanto ao autor da emenda e ao caminho do dinheiro entre Brasília e o destino. Preferência por obras novas em detrimento de uma penca de outras paralisadas de norte a sul. Baixa capacidade municipal de controlar os recursos. Segundo a CGU, ações na área do desenvolvimento regional lideram os gastos de emendas parlamentares. Alcolumbre é o padrinho da nomeação do ministro do Desenvolvimento Regional, o conterrâneo Waldez Goés.
O governo não quer ver Alcolumbre de volta à presidência do Senado. A portas fechadas, o líder lulista no Senado, Jaques Wagner, nunca se compromete com a candidatura. Sua percepção é que nem todo mundo na Casa está satisfeito com o plano do amapaense. O próprio Wagner é um dos insatisfeitos. O motivo é o, digamos, estilo de Alcolumbre, similar ao de Arthur Lira: faca no pescoço. Na Câmara, Lira inclina-se, neste momento, pela candidatura de Hugo Motta, do Republicanos. Há mais dois nomes no páreo, ao menos: Antonio Brito, do PSD, e Elmar Nascimento, do União Brasil. No Senado, o jogo é, no entanto, bem mais nebuloso e delicado. Uma negociação que o governo e o PT pretendem tocar logo após a eleição municipal. •
Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na penumbra’
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