Política
Limpa e justa
Da batalha no Equador aos impasses na Amazônia, é hora de pensar na transição energética para todos
Nos dias 28 e 29 de agosto, em Puyo, Equador, transcorreu o Primeiro Encontro Internacional pelo Yasuní, convocado pela Nacionalidade Waorani do Equador (NAWE), organização que congrega a governança dos povos indígenas da região, em meio ao marco de um ano do plebiscito nacional que em agosto de 2023 aprovou o fim da exploração de petróleo no Yasuní, marco histórico nacional, regional e global.
O encontro internacional, que reuniu povos indígenas, movimentos sociais e ativistas socioambientais também do Brasil, Colômbia, Peru, entre outros países, aconteceu pelo reconhecimento de que a experiência do Yasuní é uma oportunidade histórica para frear a crise climática. Encerrar a exploração de combustíveis fósseis é o primeiro passo para um paradigma de vida que não seja baseado no extrativismo predatório e seus efeitos desreguladores e poluentes de ecossistemas. Como é possível viver sem depender de combustíveis fósseis?
Os Waorani são povos de recente contato. Viviam desde sua origem no Yasuní, até que, na década de 1960, o Estado equatoriano se apresentou, juntamente com as petroleiras interessadas em explorar a região. Sessenta anos depois, finalmente questionados sobre a exploração, os povos indígenas da região rejeitaram a continuidade do extrativismo petroleiro, mas não só. Sua mobilização teve como resultado os votos de 58,95% na consulta nacional em defesa da vida em Yasuní. Ainda assim, o governo equatoriano resiste à soberania e à decisão popular e propôs mais cinco anos de exploração na região.
O caso do Equador evidencia como nossos Estados tornaram-se aparatos que se consideram funcionais não quando buscam garantir a soberania dos seus povos e territórios, mas quando impõem a continuidade de ações à revelia de suas consequências. Cinismo neoliberal que fez os Estados institucionalizarem o negacionismo climático por décadas, e trouxe eventos extremos mais fortes e mais comuns por todo o mundo para seguir a agenda das indústrias fósseis. E tenta dar um jeitinho para não encerrar agora no Yasuní. Nossa geração assiste ao “na volta a gente fecha” dos Estados-nações na coleira das indústrias do extrativismo fóssil.
É no Yasuní, mas também é aqui. Na mesma semana em que estávamos reunidos no Equador, o Ministério de Minas e Energia aprovou uma Política Nacional de Transição Energética que foi mais uma promessa da construção do Plano Nacional de Transição Energética, sem apresentação de metas, diretrizes concretas ou cronogramas. Ao mesmo tempo, publicou novas resoluções para incentivar a exploração de petróleo e gás natural em novos blocos no País. Enquanto promete um futuro, o Ministério de Minas e Energia segue a trabalhar pela perpetuação do passado, seus combustíveis fósseis e sua desigualdade.
Do Yasuní ao Pará, as comunidades tradicionais lideram a agenda de superação do extrativismo energético. Também em 2023, povos e comunidades tradicionais se reuniram em Belém, em encontro da Rede Energia e Comunidades, convocado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), na qual uma carta sistematizou o que deveriam ter sido as diretrizes anunciadas da política nacional.
A primeira trata da universalização do acesso à energia renovável, reconhecendo no acesso um direito fundamental para a garantia de outros direitos, como à saúde, inclusive ao pré-natal de mulheres ribeirinhas, como pontuaram coletivos marajoaras na Carta das Comadres (Observatório do Marajó, 2023).
A segunda deveria ter sido incorporada pelo governo brasileiro desde a assinatura da Convenção 169 da OIT e trata do direito à participação prévia, livre e informada de povos e comunidades tradicionais às intervenções em seus territórios, desrespeitado da Amazônia ao Matopiba e aos Pampas. Em palavras quilombolas, “energia é um direito, não queremos de qualquer jeito”.
É necessário descentralizar a produção de energia
A participação não deve, porém, ser apenas pontual. Reconhecidos como os guardiões dos seus territórios, povos e comunidades tradicionais devem ser vistos como as autoridades dos mesmos e dos recursos naturais, devendo participar, portanto, da gestão da política energética nos territórios.
Uma política energética feita para os territórios não convive com a exploração de combustíveis fósseis, que existe invariavelmente em uma lógica extrativista e colonial de ocupar (e explorar) a terra: retirar os recursos de um território para gerar riqueza em outro, como é hoje no Brasil, em que a Amazônia produz o equivalente a mais de um quarto da energia consumida no País, mesmo que quase um milhão de amazônidas não tenham acesso à luz e aos direitos que se viabilizam com ela, como refrigeração de alimentos e medicações, telemedicina e teleducação. Dentre aquelas com acesso à energia, quantos a temos plenamente?
Uma política energética feita para os territórios é a melhor agenda de desenvolvimento econômico que podemos ter neste momento. Garantir a descentralização da produção e do armazenamento da energia é revisar o uso da terra (alô, reforma agrária!), revisitar o modelo urbano de ocupação da cidade, habitação e transporte (alô, reforma urbana!), investir em educação pública superior, tal qual a própria Petrobras fez nos anos de descobrimento do pré-sal, para desenvolvimento de tecnologias nacionais e fortalecimento da formação de novos profissionais necessários neste novo paradigma, dos quais quantos e tantos virão dos próprios povos e comunidades tradicionais.
Enquanto não houver uma transição energética justa com a proteção dos povos dos rios, florestas e campos, o mundo continuará acelerado rumo ao colapso climático. Queremos planos concretos para a transição energética justa e popular: aumento da tarifa social do Luz para Todos, investimento em universidades públicas para desenvolvimento de tecnologias renováveis e formação profissional das nossas juventudes e reinserção dos trabalhadores da indústria fóssil, incorporação dos protocolos de consulta nas obras do PAC e demais programas federais, apresentação das metas de fim da exploração de petróleo na NDC, criação de uma governança energética que garanta soberania e autonomia aos territórios. Titulação e demarcação das terras indígenas, territórios quilombolas e reservas extrativistas. Do Yasuní ao Pará, energia democrática, limpa e popular. •
*Bianca Barbosa é bióloga e Luti Guedes é cientista social. Ambos fazem parte da ONG Observatório do Marajó.
Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Limpa e justa’
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