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Papai odeia o Estado

A campanha democrata foca em homens conservadores ressabiados com certas posições de Trump

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Patriarca. Comercial do Lincoln Project visa os homens que têm ojeriza à interferência da Suprema Corte em assuntos privados – Imagem: The Lincoln Project e iStockphoto
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Uma sirene toca. Passos ressoam no cascalho. Um delegado local olha para um carro e diz a uma adolescente que sabe que ela está grávida. Ele prende o pai por levá-la a um estado onde ela pode conseguir um aborto. “E você, mocinha”, diz o policial, “bem, você está presa por evitar a maternidade.”

Esse é um anúncio do Lincoln Project, grupo pró-democracia que apresenta uma visão sombria do futuro para milhões de mulheres norte-americanas, caso Donald Trump derrote Kamala Harris na eleição presidencial e criminalize o aborto em todos os Estados Unidos. Mas seu público-alvo inclui outro grupo crucial de eleitores: os homens conservadores.

“Pais Dobbs”, nomeados em homenagem à decisão Dobbs da Suprema Corte, de 2022, que cancelou o direito constitucional ao aborto, são pais de classe média, da geração X e da geração Y, irritados com a perspectiva de um “governo grande” que tome decisões sobre a saúde reprodutiva de suas esposas e filhas. O grupo foi identificado como crucial pela organização irmã do Lincoln Project, o Instituto Lincoln pela Democracia, juntamente com os “conservadores do Amanhecer Vermelho”, inspirados no filme Amanhecer Vermelho, de 1984, no qual adolescentes lutam contra forças soviéticas invasoras, que valorizam uma defesa nacional forte e alianças tradicionais.

Os “pais Dobbs” não querem um burocrata a decidir sobre o direito reprodutivo de suas mulheres e filhas

É a mais recente tentativa de encontrar um nome rápido para o tipo de eleitores cujas decisões deverão afetar os Estados Unidos e o mundo. Isso porque, na ausência de uma votação popular nacional, o resultado da eleição presidencial provavelmente se resumirá a dezenas de milhares de votos em sete estados oscilantes (e decisivos).

A primeira versão foram as “mães do futebol”, que apoiaram o democrata Bill Clinton contra o republicano Bob ­Dole em 1996. Após os atentados terroristas em Nova York e Washington em 11 de setembro de 2001, o então senador Joe ­Biden opinou, no entanto, que “as mães do futebol são mães da segurança agora”, quando o republicano George W. Bush tentava se reeleger. Eleições posteriores trouxeram os rótulos “mãe Starbucks”, “mãe garçonete” e “mãe Walmart”, geralmente aplicados a mulheres brancas de classe média que enfrentavam dificuldades econômicas. Depois vieram os “pais Nascar”, homens brancos de meia-idade, da classe trabalhadora ou da classe média baixa, e as “mamães ursos”, mães e avós conservadoras que nos últimos anos se organizaram pelos direitos parentais.

Agora os EUA enfrentam mais uma eleição acirrada. As últimas pesquisas de estados indecisos feitas pela Emerson­ College Polling e o site The Hill descobriram que Harris tem ligeira vantagem sobre Trump em Michigan, na Geórgia e em Nevada, e os candidatos empatam na Pensilvânia. Trump está ligeiramente à frente em Wisconsin, Carolina do Norte e Arizona.

Minhas regras. Protestos contra a decisão da Suprema Corte de derrubar a proteção nacional ao direito ao aborto – Imagem: Victoria Pickering

A decisão Dobbs, que anulou meio século de precedentes jurídicos de proteção ao direito ao aborto sob a decisão Roe vs. Wade, galvanizou as eleitoras progressistas nas eleições de meio de mandato em 2022. Mas o Instituto Lincoln pela Democracia acredita que os homens conservadores também podem ser cruciais. Trygve Olson, consultor sênior do instituto, disse: “Os pais Dobbs tendem a ser da geração do Milênio. Tendem a ser homens brancos com ensino superior, e são desproporcionalmente pais de meninas. Alguns deles são pró-vida, são conservadores. O conservadorismo deles é baseado em ‘Eu não quero que o governo me diga o que devo fazer’”.

Olson caracterizou o pensamento de muitos desses eleitores desta forma: “Espero que minha filha nunca tenha que enfrentar essa escolha, mas, se tivesse, não quero que algum teocrata ou funcionário do governo tome essa decisão. Espero que minha filha me procure. Estou tentando criá-la com integridade. Vejo meu papel como protetor. Não quero que o governo tome essa decisão, assim como não quero que ele me diga o que posso cultivar na minha terra ou que tipo de arma posso ter”.

O anúncio sobre a “fronteira estadual”,­ um alerta sobre a proibição nacional do aborto pelo Projeto 2025, um plano de política radical de um grupo de pensadores de direita, atraiu 500 mil visualizações no YouTube em dois dias. Olson, que cresceu no estado decisivo de Wisconsin, continuou: “Ser pai de uma menina muda sua perspectiva, porque você pode ter empatia por muitas coisas pelas quais elas passam. Como eu disse à minha filha de 15 anos, posso ter empatia por alguns desafios que ela enfrenta e me identificar com eles, mas não sei como é ser uma garota de 15 anos. Nunca fui uma. Mas sei que posso pegar o que sei e aplicar a você, e isso parece estar acontecendo com esses eleitores. Joe Biden havia perdido força com eles. Muitos estavam indecisos. O que vemos nos números é que Kamala Harris recuperou muito. Ainda há trabalho a ser feito”.

O aborto foi uma questão crucial para os democratas nas eleições de 2022 e 2023. Ao perceber o risco político, Trump tentou garantir aos eleitores que não buscaria uma proibição nacional e se distanciaria do Projeto 2025. Olson observou: “Você vê Trump tentando ­recuar da decisão Dobbs. Está entendido que esses eleitores são os que vão decidir nos estados-chave”.

Os democratas aproveitaram a questão e o tema da “liberdade” em sua recente convenção em Chicago. Entre os palestrantes estava Amanda Zurawski, que se lembrou de ter entrado em trabalho de parto prematuro com 18 semanas de gravidez, mas foi mandada para casa por um hospital no Texas, onde há uma proibição quase total do aborto, por ter sido considerada desqualificada para um aborto sob a exceção da lei para emergências com risco de vida. Ao lado de Zurawski no palco, seu marido, Josh, disse: “Estou aqui esta noite porque a luta pelos direitos reprodutivos não é apenas das mulheres. Trata-se de lutar por nossas famílias e, como disse Kamala Harris, nosso futuro”.

A simpatia demonstrada por Trump em relação a Putin afasta os republicanos que veem a Rússia como o “império do mal”

Em um encontro de pensadores do Instituto Brookings, Elaine Kamarck, ex-funcionária da Casa Branca, comentou: “Alguém me perguntou algumas semanas atrás se eu poderia resumir a mensagem de Kamala Harris em uma frase? Eu disse: não, não posso, eu posso resumir em uma palavra: ‘liberdade’. O que está por trás disso? A decisão ­Dobbs. O que está por trás é a decisão sem precedentes da Suprema Corte de cancelar um direito que a população tem há meio século, e a população que mais se importa com isso é 55% do eleitorado”.

“O que a decisão sobre o aborto fez foi muito além do aborto”, acrescentou. “Foi sobre liberdades fundamentais. O governo pode entrar no seu quarto, na sua casa ou no consultório do seu médico e tomar decisões por você? Isso é assustador. É particularmente assustador para um país, para um eleitorado, construído sobre a liberdade, então aqui tivemos uma situação em que os democratas tiraram dos republicanos um tema que costumava ajudá-los.”

A convenção também se esforçou para apresentar Harris como uma comandante em chefe viável, em contraste com o isolacionismo de Trump, seu estilo caótico e suas declarações depreciativas sobre o ex-senador John McCain, prisioneiro de guerra no Vietnã, e outros militares veteranos. Olson acredita que os “conservadores do Amanhecer Vermelho” também podem influenciar a eleição. “Eles tendem a ser homens e mulheres da geração X, ou baby boomers tardios. São conservadores, atingiram a maioridade na época de Reagan e Thatcher. Cerca de metade deles votou em Trump. A outra metade não votou em Biden. Eles meio que esperaram para ver. Dito isso, há coisas capazes de movê-los”, analisa. “Trump dizendo que o líder russo Vladimir Putin é um gênio por invadir a Ucrânia, eles estão muito preocupados com isso. Estão preocupados com o fato de o Partido Republicano não ser mais aquele que acreditava na existência de um império do mal, então a política externa importa para eles até certo ponto.”

Zero a zero. O objetivo não é atrair mais votos para Kamala Harris, mas convencer parte do eleitorado a não apoiar Donald Trump – Imagem: Saul Loeb/AFP

Alguns dos anúncios mais bem-sucedidos do Lincoln Project nas eleições de meio de mandato de 2022 tiveram como alvo os “conservadores do Amanhecer Vermelho” em estados decisivos, focando o fato de Trump estar ao lado de Putin contra a Ucrânia. “Do ponto de vista eleitoral, não se trata de provavelmente fazê-los votar em Harris, mas sim de fazê-los desqualificar Trump. Muitos deles nunca vão apoiar um democrata, e provavelmente votarão num republicano. Mas a questão é Donald Trump, porque é outra coisa que os deixa desconfortáveis com Donald Trump.” As eleições primárias republicanas mostraram uma minoria pequena, mas significativa, a se recusar a abraçar Trump e sua política externa de “a América em primeiro lugar”. Embora sua rival, Nikki Haley, tenha desistido das primárias no início de março, defendendo posições tradicionalmente mais agressivas, continuou a atrair até 20% nas disputas.

Harris e Trump passaram os últimos dias a viajar por estados indecisos como Geórgia, Michigan e Wisconsin. Mas com os principais “campos de batalha” eleitorais variando do centro-oeste ao sul e sudoeste, e abrangendo várias faixas de idade, gênero e raça, é difícil classificar os eleitores em categorias e encontrar a mensagem certa para o público certo.

Em um debate organizado pelo Instituto de Política da Universidade de ­Chicago e pelo Cook Political Report em paralelo à convenção democrata, o pesquisador John Anzalone disse: “Eu acho que o ‘campo de batalha’ está com as mulheres de classe média. É fundamental quebrar o mito de como são essas mulheres. Primeiro, elas são muito diversificadas. Em 1990, era de 85% o porcentual de mulheres de classe média brancas. Hoje, são 61% ou algo assim, então é diferente. São mais velhas, o que acho bom para Kamala de algumas maneiras, assim como em coisas ligadas a questões sociais. É uma mistura de gente que tem filhos, que não tem filhos, etc. Mas a razão de esse universo ser importante é que Hillary Clinton conseguiu 46% delas, Biden obteve 56%.”

Os homens de classe média, observou Anzalone, afastaram-se dos democratas. “Então, onde você vai compensar isso? Pode ser com as mulheres de classe média, não apenas pela questão do aborto, mas por Donald Trump ser quem ele é.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Papai odeia o Estado’

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