Entrevistas

‘Em Cuba sempre se comia; agora, há quem passe fome’: as reflexões de Leonardo Padura sobre o passado e o futuro da Revolução

Prestes a voltar ao Brasil, o escritor também relembra a CartaCapital a visita a Lula em Curitiba, em 2019

‘Em Cuba sempre se comia; agora, há quem passe fome’: as reflexões de Leonardo Padura sobre o passado e o futuro da Revolução
‘Em Cuba sempre se comia; agora, há quem passe fome’: as reflexões de Leonardo Padura sobre o passado e o futuro da Revolução
O escritor cubano Leonardo Padura na sua casa em Havana, durante entrevista em 2020. Foto: Adalberto Roque/AFP
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Leonardo Padura é, sem dúvida, o romancista cubano de maior sucesso internacional em nossos tempos. Suas obras ganharam traduções em dezenas de países e, apesar de sempre falarem sobre Cuba, constroem conexões com leitores muito distantes da ilha caribenha. O motivo, diz o escritor, são os valores universais.

No Brasil, a editora Boitempo lançou vários de seus livros, como O homem que amava os cachorros, Água por todos os lados, Como poeira ao vento e Febre de cavalos. As histórias do detetive Mario Conde, com seu humor pessimista e sua criatividade para resolver as dificuldades cotidianas, tiveram boa recepção no País.

Padura vive na mesma casa em Havana desde que nasceu, em 1955. Ao contrário de tantos amigos e conhecidos, jamais deixou o país — e não pensa em fazê-lo. Acompanhou de perto todo o desenvolvimento da Revolução Cubana: da vitória que derrubou a ditadura de Fulgencio Batista, em 1959, a uma nova fase sob a liderança de Miguel Díaz-Canel, desde 2018.

Conhece como poucos, também, as expectativas e as frustrações na relação com os Estados Unidos. O abismo entre os países parece, hoje, invencível, apesar da distância de apenas 180 quilômetros entre Havana e o estado norte-americano da Flórida. Em 2016, no fim do segundo mandato de Barack Obama, chegou ao ápice a esperança de aproximação; a ascensão de Donald Trump, porém, marcou um brutal retrocesso nos delicados avanços. Joe Biden, por sua vez, pouco fez para mudar o cenário.

Em novembro de 2023, como de praxe, a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução a cobrar o fim do embargo imposto há seis décadas pelos Estados Unidos a Cuba. A vitória moral da pequena ilha, porém, é apenas isso: simbólica.

Desde 1992, Cuba apresenta anualmente resoluções na assembleia para pedir o fim da sanção estabelecida unilateralmente, em plena Guerra Fria, pelo presidente John F. Kennedy para asfixiar o governo socialista.

Votaram no ano passado contra o pleito da ilha Estados Unidos e Israel, com abstenção da Ucrânia. Essa punição coletiva a se abater sobre os cubanos, com um peso ainda maior desde o fim da União Soviética, se soma à incapacidade do governo local de evitar a deterioração das condições de vida da população. O fator Trump e a pandemia da Covid-19 aprofundaram um drama de complexa resolução.

“Que as pessoas possam viver honesta e dignamente com seu salário: isso seria uma grande esperança para o futuro de Cuba”, diz ele em entrevista a CartaCapital.

Cinco anos depois de visitar Lula (PT) na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba (PR), Padura volta ao Brasil em setembro, a convite do Clube de Leitura CCBB 2024, no CCBB Rio de Janeiro.

Leonardo Padura (centro) após visitar Lula em Curitiba, em 2019. Foto: Ricardo Stuckert

Ele passará pela Bienal do Livro, em São Paulo, em 10 de setembro; pelo Clube de Leitura CCBB 2024, no Rio, no dia 11; por uma atividade na UFPA, em Belém (PA), no dia 13; por uma agenda no Instituto Cervantes de Brasília (DF), no dia 17; e, por fim, pelo Museu de Cultura Judaica, novamente na capital paulista, em 20 de setembro.

Nesta entrevista, Padura fala sobre as diversas camadas de suas obras, a relação dos cubanos com a revolução, o encontro com Lula e suas expectativas para um futuro cada vez mais difícil de imaginar.

Confira a seguir:

CartaCapital: Como é escrever e produzir literatura em Cuba atualmente?

Leonardo Padura: Vivemos um momento cultural de grande transformação. Passamos da era analógica para a era digital, e isso implica uma mudança de muitos paradigmas, de muitas formas de compreender e expressar a realidade. Tudo se tornou mais rápido, mais imediato, e as pessoas querem que tudo que chegue às suas mãos seja de alguma forma um produto, o que não é bom para a literatura.

A literatura precisa do seu espaço, do seu tempo, e não deve estar associada à pressa, nem deve estar associada diretamente ao mercado. O mercado é necessário, porque para um livro meu chegar às suas mãos tem de existir esse mercado, com a editora, a distribuidora, a livraria. Mas isso está afetando, de certa forma, a literatura, promovendo uma escrita fácil de consumir.

Quando você lê as listas de mais vendidos em jornais de prestígio como o New York Times, vê que a maioria não é de uma literatura de alto nível artístico, mas vende, e isso acontece em todas as línguas: em inglês, em espanhol, em português, em todos os mercados.

Então, o escritor tem de saber que vai lutar em um terreno que mudou, mas que a essência da literatura deve permanecer a mesma.

Milan Kundera dizia que a essência da arte do romance é refletir a condição humana, os conflitos da condição humana. E Flaubert, quando lhe perguntaram por que ele havia escrito Madame Bovary e escolhido uma mulher adúltera como sua heroína, disse que só queria chegar à alma das coisas.

Acredito que o escritor tem de continuar tentando chegar à essência, aos grandes conflitos da condição humana. Se tivermos sucesso comercial, ele será sempre bem-vindo. Se não tivermos, sabemos que haverá leitores que sempre vão procurar aquele tipo de literatura que conte algo mais do que apenas uma trama em que muitas coisas acontecem, com personagens muito simpáticos e representativos e com uma linguagem muito simples.

CC: Livros como o da série de Mario Conde não apenas se passam em Cuba, mas são obras profundamente sobre Cuba. Por que essa escolha?

LP: Tenho uma relação de pertencimento cultural muito forte. Acredito que a maioria de nós, artistas, é fruto de uma cultura, e a cultura é o que nos forma, nos dá origem, nos dá instrumentos – por exemplo, a linguagem, no caso do escritor.

No meu caso específico, é a língua espanhola que tem um caráter cubano, caráter de Havana. Essa é a minha forma de expressão. Tentei com esses romances não apenas contar uma trama policial, mas acima de tudo usá-los para fazer uma espécie de crônica do que tem sido a vida cubana contemporânea, uma crônica sob a perspectiva da minha geração, que nasce em meados dos anos 1950 e vive todo o processo revolucionário em Cuba.

Essa perspectiva não está só nos romances de Mario Conde, que é um personagem muito típico daquela geração, mas nos meus outros romances – O romance da minha vida, Como poeira ao vento, O homem que amava os cachorros

Há um grande ensinamento que nos deixou Miguel de Unamuno, escritor e filósofo espanhol que dizia que na arte devemos encontrar o universal nas entranhas do local.

Acredito que sempre é possível, a partir de uma história doméstica, uma história muito próxima no tempo e no espaço do escritor, construir uma ponte para o universal, porque esses valores universais são justamente o que dizia ao me referir a Kundera: são os valores e a essência da condição humana, que é universal.

Quando falo com um leitor brasileiro, falo sobre amizade, sobre medo, sobre repressão. Toco em questões que ele também viveu, talvez com outras características, mas que fazem parte daquela condição humana universal.

É por esse caminho que se estabelece uma comunicação entre um escritor que mora e escreve em Cuba e o leitor. No caso do Brasil não é tão diferente, mas imagine quando um leitor da Lituânia ou um do Japão lê um dos meus romances. Se não houver essa comunicação por meio do universal, será muito difícil para esse eleitor apreciar o que tentei dizer nos meus livros.

CC: E a relação entre Cuba e EUA diz muito sobre a vida cotidiana dos cubanos. Em 2016, com Obama, houve o ápice da esperança. Depois, veio Trump e chegou o retrocesso. O que aconteceu?

LP: Daqui a duas semanas estarei no Brasil e passarei por várias cidades, para vários eventos. Apresentaremos um romance que tem dois momentos históricos, um no início do século XX e outro no século XXI, precisamente naquele 2016 e no momento em que chegam a Cuba Rolling Stones, Chanel e Obama. Foi um momento em que a sociedade cubana se mobilizou, em que havia esperança. Houve mobilidade, os negócios prosperaram, as pessoas viajaram.

O que melhor pode explicar o ambiente em Cuba naquele momento é que muitos cubanos conseguiram vistos para viajar aos Estados Unidos. As pessoas foram aos Estados Unidos e voltaram a Cuba.

No último ano saíram de Cuba rumo aos Estados Unidos, por vias legais e ilegais, mais de 600 mil pessoas. Com esses números explico tudo o que aconteceu nestes anos: uma crise econômica, uma desvalorização da moeda e uma falta de produtos essenciais.

Muito teve realmente a ver com a política que Donald Trump adotou em relação a Cuba e que Biden apenas modificou. Mas teve muito a ver com a incapacidade do governo cubano e, sobretudo, com as limitações do sistema econômico que continua a existir em Cuba para resolver os problemas econômicos que o país tem e que afetam o povo de forma muito dolorosa.

Cuba era um país onde as pessoas nem sempre comiam bem, mas sempre comiam, e acredito que neste momento há pessoas em Cuba que podem até passar fome.

Em Havana, cartaz com o rosto dos presidentes Raúl Castro e Barack Obama chama a atenção dos turistas Em Havana, cartaz com o rosto dos então presidentes Raúl Castro e Barack Obama, em 2016. Foto: Yuri Cortez/AFP

CC: Diante desse cenário, qual é a relação dos jovens e dos idosos com a Revolução Cubana, que completou 65 anos em 2024?

LP: Os romances que escrevi falam da minha geração. Neste momento, estou escrevendo um romance que tem muito a ver com o destino quase trágico de uma geração que chega à velhice em níveis de pobreza muito complicados de resolver.

Uma pessoa da minha idade se aposenta e recebe uma pensão de 2 mil pesos. Uma caixa de 30 ovos, se conseguir, pode custar 3 mil pesos.

Aos jovens, a opção mais popular é emigrar. A maioria das pessoas que sai de Cuba tem entre 15 e 50 anos, ou seja, são pessoas que ainda podem trabalhar, e a maioria é muito jovem, alguns dos quais são até muito bem preparados, já com formação universitária ou profissional.

Eles não têm uma visão da política que sirva para lhes dar um consolo. Precisam viver suas vidas, veem a frustração da vida dos mais velhos, dos pais, dos avós, e não esperam essa frustração chegar. Optam pelo exílio.

O caminho mais percorrido nos últimos anos tem sido de Havana a Manágua, Nicarágua, e dali à famosa Rota dos Coiotes, que percorre toda a América Central e todo o México, até chegar à fronteira dos Estados Unidos, com um preço alto e com riscos que podem ser mortais. Mas não pensam duas vezes e vão para o exílio.

CC: E você? Já pensou em sair de Cuba em algum momento?

LP: Tenho uma condição muito peculiar: sou escritor e, felizmente, meus livros permitem-me ter uma situação econômica mais favorável que a da maioria das pessoas em Cuba, mas sinto que a minha literatura, a minha cultura e o meu pertencimento estão em Cuba.

Em vários de meus livros há momentos que se desenvolvem fora de Cuba. O exemplo mais visível é O Homem que amava os cachorros, que se passa no México, na França, na Espanha, na União Soviética… Mas as histórias sempre saem de Cuba e voltam a Cuba.

Mesmo que esteja falando de Trotsky, de Mercader, de Stalin, estou falando também de Cuba. Esse é meu interesse fundamental como escritor, como intelectual, como pessoa. Isso faz com que tenha mais raízes na vida em Cuba.

Além disso, há questões sentimentais. Moro na mesma casa onde nasci, uma casa que foi ampliada por minha esposa e por mim. Tenho meus amigos aqui, tenho minha língua, tenho minhas lembranças.

Lembre-se de que um escritor, especialmente um romancista, é como um depósito de memórias. Tem de acumular lembranças, e essas lembranças tenho muito perto, aqui em Cuba, e as recupero com muita facilidade.

CC: Há muita diferença na recepção de seus livros em Cuba e em outros países?

LP: A recepção dos meus livros em Cuba é muito limitada pelo número de exemplares que circulam. Conseguimos fazer com que quase todos os meus livros tivessem alguma edição cubana, porque as edições da Espanha seriam impossíveis de vender em Cuba.

Imagine que um livro que custa 20 euros é mais do que o salário de um mês de qualquer pessoa em Cuba. Seria impossível vender esses livros aqui. Mas as pessoas procuram alternativas, os leem emprestados ou em cópias digitais piratas. E as pessoas se identificam muito com meus livros. Devido a um romance como O homem que amava os cachorros, por exemplo, muitas pessoas me agradeceram porque aprenderam coisas sobre elas mesmas.

Tenho uma comunicação muito próxima com aqueles leitores cubanos que, de alguma forma, têm acesso aos meus livros. Fora de Cuba, estou publicado em mais de 30 idiomas. Em alguns deles não tenho a ideia exata de qual é a recepção, mas há outros, como é o caso do português, em que sinto que encontrei leitores.

Na primeira resposta que te dei, falei sobre como é difícil encontrar esses leitores. Bom, tive a sorte de encontrá-los.

No Brasil aconteceu uma coisa muito legal. Caminhava pela Avenida Paulista ou por Ipanema quando alguém se aproximou de mim e disse: “Você é o Padura, de O homem que amava os cachorros“.

E isso é muito legal. O brasileiro não tem muita vergonha de abordar um escritor e conversar com ele. Talvez na Finlândia tenha alguém que leu meu livro, olhou para mim e não se aproximou. Os brasileiros se aproximam, falam com você e, se puderem, até tocam em você.

CC: Você visitou Lula na prisão em Curitiba, em 2019. Dois anos depois, a Justiça reconheceu a parcialidade e a incompetência do juiz que o condenou. Em 2022, ele chegou pela terceira vez à Presidência. Como foi aquele encontro?

LP: Foi uma visita a uma pessoa por quem senti um apreço e com quem estabeleci uma amizade. Não foi uma visita de caráter político, porque não tenho o direito de participar ativamente da política de outro país, apesar de ter tido essa relação próxima com o presidente Lula.

Foi uma tarde muito agradável, porque curiosamente conversamos mais sobre livros. Um dos livros sobre os quais conversamos é a trilogia de Yuval Harari, o filósofo israelense, principalmente 21 lições para o século 21, que Lula lia naquela época.

Ele me perguntou “Padura, você já leu esse livro?”. “Sim, presidente, eu li recentemente”. E ele me disse: “E você não tem medo de tudo que ele diz?”. E eu disse: “Sim, presidente, tenho medo”. Porque Arari faz uma análise de um futuro que pode ser muito complicado.

Foi um ato de proximidade com um amigo. Fiquei muito satisfeito por sua condenação ter sido revogada, com a possibilidade de retornar à vida pública e à vida política – e, também, por ser o atual presidente do Brasil.

Espero que em alguma das apresentações que terei no Brasil possamos voltar a nos encontrar, em uma situação de normalidade: eu como escritor, ele como político e presidente da República.

O escritor cubano Leonardo Padura durante entrevista à AFP. Foto: Arnulfo Franco/AFP

CC: E quais são os seus planos para o futuro?

LP: Dia desses, alguém me perguntou: “Você nunca pensou em escrever uma autobiografia?”. Eu digo que não faz sentido escrever uma autobiografia, porque a minha biografia já está escrita, está nos meus livros.

Há alguns dias lia um livro de memórias do escritor irlandês John Banim, que disse: “Acho que deveria ter escrito menos e vivido mais”. Não sei, acredito que vivi escrevendo e aí estão as minhas expectativas para o futuro: tentar continuar a escrever.

Sei que tem uma coisa muito complicada, que é a velhice, que afeta a todos nós de todas as maneiras. Não só fisicamente, pode nos afetar espiritual e mentalmente, e isso me deixa com muito medo. Mas pretendo continuar a escrever o máximo que puder.

Espero ter saúde suficiente para continuar a escrever e, acima de tudo, no nível social, gostaria que as coisas em Cuba melhorassem para todas as pessoas.

Sempre digo que existe um sinal de que uma sociedade está funcionando: quando as pessoas podem viver honestamente do seu trabalho. Hoje, em Cuba, isso não é possível para muitas pessoas. Há outras que têm empregos em que até ganham muito dinheiro, com pequenas empresas privadas, e isso lhes permite ganhar muito dinheiro, justamente por causa da ineficiência econômica do Estado cubano.

Parabéns a essas pessoas que são hábeis, são empreendedoras, são ousadas ​​e conseguem. Mas há muitas outras que podem ser o médico que vai me salvar de uma doença ganhando um salário que não é suficiente para satisfazer todas as suas necessidades.

Que possam viver honesta e dignamente com seu salário. Isso seria uma grande esperança para o futuro de Cuba.

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