Economia
Floresta viva
É possível compatibilizar desmatamento zero e atividade econômica na Amazônia, garante um novo estudo


A generalização das queimadas, seja como método agrícola arcaico ou como ação política radical, à semelhança do “Dia do Fogo” em 2019, no Pará, agora espalhadas desde a floresta Amazônica até o Pantanal e os canaviais paulistas, deixou ainda mais evidente a importância da meta de desmatamento zero não só na Amazônia, até 2030, prometida e reiterada pelo presidente Lula, mas também em todos os biomas, segundo propõe a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente.
O planeta acompanha com vivo interesse. Em 2021, o físico Paulo Artaxo, integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (IPCC), previu que a pressão internacional para o governo brasileiro deter o desmatamento na Amazônia iria crescer rapidamente porque, se o País perder toda a floresta para as queimadas, por exemplo, a estimativa é de um aumento de até 6 graus celsius na temperatura do planeta, quando a meta global é uma variação de até dois graus neste século. O governo mudou, Lula e a ministra determinaram um combate intenso às queimadas criminosas e a toda atividade ilegal de garimpo e extração vegetal e o desmatamento na Amazônia diminuiu 50% no primeiro ano do atual mandato, mais 38% no primeiro semestre deste ano.
Um argumento adicional em defesa do desmatamento zero é que, inclusive na Amazônia, é perfeitamente possível a sua harmonização com a atividade econômica sustentável e que mantém a floresta protegida, defendem economistas em estudo do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. A compatibilidade do desmatamento zero com a atividade econômica retira a última justificativa dos opositores à proteção integral da cobertura vegetal da Amazônia, de que seria uma espécie de sacralização da maior floresta do mundo e significaria retirar o meio de vida de milhares na floresta. Uma desculpa conveniente a mineradores, garimpeiros e pecuaristas com atuação irregular, em busca de pretextos para legitimar sua atividade ilegal.
Os custos podem ser contornados com investimento nas atividades que usam áreas de cultivo ou pastagens
No trabalho intitulado “Desmatamento zero na Amazônia é factível e traz benefícios econômicos e ambientais”, o economista Edson Paulo Domingues e coautores sustentam ser factível tanto o desmatamento zero quanto a geração de ganhos econômicos no bioma. O estudo considera o período de 2021 a 2040 e um desmatamento econômico de 10 milhões de hectares, sendo 7,5 milhões para pastagens e 2,24 milhões para culturas. O cálculo não leva em conta o desmatamento ilegal, a grilagem ou mineração.
O trabalho estabeleceu um cenário de referência de crescimento de 2,2% ao ano para a economia brasileira entre 2021 e 2040 e considerou ainda o crescimento da população em cada região, o aumento da produtividade da terra, em 0,9% ao ano, e do trabalho, em 0,5% ao ano. Nesse cenário, a expansão do PIB amazônico seria ligeiramente inferior à do País e alcançaria 2,17% ao ano. A pesquisa detalha os resultados apontados por um modelo desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada, do Cedeplar, sobre as possibilidades do desmatamento zero no bioma, seus custos e benefícios econômicos e ambientais.
De acordo com o estudo, a política de desmatamento zero teria um custo econômico, principalmente para aquelas regiões mais dependentes do uso da terra em geral, da pecuária de bovinos e da agricultura. “Calculamos o montante de investimentos necessário para os setores associados ao uso da terra no bioma Amazônia neutralizarem os impactos negativos da política de desmatamento zero considerando benefícios econômicos. O nosso modelo simulou um investimento total de 128 bilhões de reais em 20 anos, cerca de 6,4 bilhões por ano”, aponta Aline Souza Magalhães, professora do Departamento de Ciências Econômicas da UFMG, pesquisadora do Cedeplar e coautora do trabalho. Um montante relevante, mas “perfeitamente factível”, diz, em linha com outros tipos de desembolso para o desenvolvimento agropecuário, como o Fundo para Desenvolvimento da Região Norte. Esse investimento, calculam os autores do trabalho, permitiria neutralizar os impactos negativos da política de desmatamento zero, além de trazer benefícios econômicos. Seria necessário, contudo, implementar “mecanismos que associem esse investimento à comprovação de não-desmatamento”, com incentivo ao crescimento da produtividade em pequenas e médias propriedades na Amazônia por meio de investimento com objetivos específicos, no caso a “adoção de tecnologias provadamente sustentáveis que tornam esses produtos atrativos também no mercado internacional”.
Passa a boiada. A agropecuária deixa um rastro de destruição na Amazônia – Imagem: Adriano Brito/Sistema CNA/Senar
A possibilidade de conciliação de desmatamento zero e atividade econômica, levantada pelo estudo, é relevante porque o uso da terra como fator produtivo, principalmente aquele voltado para a expansão agropecuária, é o principal responsável pelo desmatamento sistemático na Amazônia. Descontinuar esse tipo de uso não é o mesmo, contudo, que afirmar a impossibilidade de toda e qualquer atividade econômica em uma situação de desmatamento zero, sustentam os economistas.
Os autores elaboraram uma base de dados detalhada de transição do uso do solo no País, e mapearam as atividades da agropecuária e produção extrativa de 52 regiões, classificadas por estados e segundo os biomas brasileiros. Associaram à base de dados as emissões de gases de efeito estufa resultantes da transição de usos do solo, o que possibilitou captar as emissões da transformação de áreas de florestas em áreas para culturas e pastagens. Estas emissões, anotaram os autores, decorrentes da conversão de áreas de florestas para áreas agrícolas ou pastagem, diminuem o teor de matéria orgânica nos solos, a partir de um processo de perda de carbono do solo para a atmosfera.
As projeções consideram um “desmatamento econômico” no País de 34 milhões de hectares acumulados de 2021 a 2040. Trata-se de desmatamento legal, que utiliza as terras disponíveis legalmente para desmatamento. “Na nossa análise”, detalham os economistas, “trabalhamos com desmatamento que é resultado da tendência de expansão das atividades produtivas, o que, portanto, exclui o desmatamento ilegal, grilagem ou mineração. Dos 34 milhões de hectares desmatados nesse cenário, 14 milhões seriam deslocados para pastagem, 12 milhões para culturas e 8 milhões para floresta plantada.” Nas regiões que formam o bioma Amazônia, prosseguem, o desmatamento acumulado seria de 10 milhões de hectares de 2021 a 2040, dos quais 7,6 milhões em pastagem e 2,24 milhões em culturas. Esse desmatamento equivale a 526 mil hectares por ano de 2021 a 2040.
A adoção de tecnologias provadamente sustentáveis torna os produtos atrativos também no mercado internacional
O uso da terra como fator produtivo é uma das fontes de desmatamento, pois se relaciona à expansão da produção agropecuária. Com base em dados do MapBiomas, o estudo do Cedeplar aponta uma ocupação e uso da terra muito heterogêneos no País, com 30% destinados à agropecuária – 65,6% à pecuária e 25% à agricultura –, com um total de 255 milhões de hectares produtivos. A soja ocupa 57% de toda a área agricultável, equivalente a 36,4 milhões de hectares. A cana-de-açúcar ocupa 16,4%, equivalente a 10,5 milhões de hectares.
Um aspecto importante é o efeito econômico, isto é, quais são os custos da imposição de desmatamento zero e como esses custos econômicos poderiam ser evitados com investimento nas atividades que usam áreas de cultivo ou pastagens. Com esses investimentos, destaca Domingues, seria possível evitar parte da deflorestação e das emissões do “desmatamento econômico”, representando um ganho ambiental importante e neutro, do ponto de vista econômico, nas regiões. O investimento nos setores agropecuários foi estimado de forma que o impacto negativo da política de desmatamento zero na atividade, no PIB, não ocorresse em nenhuma das regiões da Amazônia.
Renovação. Cidades como Marabá precisam ser revitalizadas no contexto da transição ecológica – Imagem: Augusto Miranda/Agência Pará
Quase tão surpreendente quanto a possibilidade de combinação harmoniosa entre desmatamento zero na Amazônia e ganhos econômicos é a necessidade de revitalizar as cidades em meio à floresta. Segundo o engenheiro Antônio Miguel Vieira Monteiro, gerente do Projeto TerraLib e coordenador do Programa Institucional Espaço e Sociedade do INPE, é fundamental recuperar o debate sobre as possibilidades do urbano na região, como a mais forte estratégia para a construção de políticas ambientais inclusivas, portanto com implicações diretas sobre o clima no bioma e as políticas relativas à emissão. Monteiro foi um dos expositores da mesa-redonda especial sobre Economia, Meio Ambiente e Mudança Climática no Seminário de Diamantina, organizado no mês passado pelo Cedeplar-UFMG.
O fator urbano na Amazônia tem sua existência negada historicamente pelos mitos que percebem a região como “um espaço vazio”, ou habitat exclusivo de populações indígenas, ou fronteira do campesinato, argumentava a geógrafa Bertha K. Becker, estudiosa da Amazônia por 30 anos. Há três décadas, mais da metade da população vivia, no entanto, em núcleos urbanos, “ainda que sem condições de vida dignas, configurando a Amazônia como uma floresta urbanizada”, descreve Becker no trabalho intitulado “A Especificidade do Urbano na Amazônia: Desafios para Políticas Públicas Consequentes”, de 1998. •
Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Floresta viva’
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