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Marco histórico

A Lei Maria da Penha trouxe inegáveis avanços, mas a proteção integral da mulher ainda enfrenta muitos desafios

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Imagem: Quem TV/APP-Sindicato
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Dia 22 de setembro é meu segundo aniversário, porque eu nasci de novo”, relembra Cileide Cristina da Silva, primeira mulher a acionar a Lei Maria da Penha, justamente no dia em que ela começou a vigorar. Na quarta-feira 7, a lei completou 18 anos e, para esta vendedora ambulante sobrevivente, tem um sabor de recomeço, porque lhe permitiu libertar-se de uma relação de duas décadas de violência extrema e terror psicológico. Hoje, aos 54 anos, ela divide-se entre cuidar dos netos, ministrar palestras em escolas e atender jornalistas com frequência, porque sua trajetória virou um marco de resistência e emancipação feminina no Brasil.

O Brasil figura entre os países mais violentos contra as mulheres. A cada hora, 503 brasileiras são vítimas de agressão e, a cada dois minutos, cinco são espancadas por seus companheiros, alerta o Instituto Patrícia Galvão. Cileide diz que ainda dói falar sobre o seu casamento, pois era agredida diariamente. Não era apenas violência física, contra ela e os quatro filhos, mas também toda a sorte de abusos psicológicos, morais e sexuais. Dez anos mais velho, o marido não a deixava nem sequer usar desodorante ou condicionador para o cabelo, dizia que isso “não era coisa de mulher casada”. Hoje, em ­suas palestras, ensina às mais jovens como identificar um relacionamento abusivo. “O agressor tenta nos afastar da família, das amigas, e tira nossa autonomia financeira. No início, parece cuidado. Quando a gente percebe, já está totalmente dependente, sem ter como escapar.”

Sem saber ler nem escrever e sem fonte de renda, Cileide viveu refém do seu agressor e não sabia a quem pedir ajuda. Certa vez, quando foi buscar os filhos na escola, desviou o caminho e bateu na porta de uma delegacia, mas a decepção não poderia ter sido maior. “O delegado me perguntou se eu não tinha vergonha de denunciar o pai dos meus filhos. Disse que, se ele me batia, era porque alguma coisa eu aprontava. Saí de lá destruída. Parecia que todo aquele horror era culpa minha.”

Referência mundial no combate à violência de gênero, a legislação acaba de completar 18 anos

Certa vez, ao encontrar nos pertences da esposa um folheto de uma organização feminista, o companheiro ficou enfurecido. “Disse que tinha pegado o papel na rua e não sabia o que era, até porque não sei ler. Ele saiu dizendo que, na volta, se eu não tivesse aprendido o que estava escrito ali, o pau ia comer.” Não deu outra, ao retornar para casa bêbado, deu uma surra na esposa e a obrigou a comer o panfleto, na frente da família. A filha mais velha não suportou assistir à cena e avançou contra o pai. Apanhou e acabou gravemente machucada. Usaram um telefone público para pedir socorro, justamente às mulheres que haviam entregado o folheto a Cileide.

As ativistas do Centro das Mulheres do Cabo, localizado em Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife, acompanharam mãe e filha à delegacia de polícia. Ainda assim, o delegado se recusava a formalizar a denúncia, dizendo que a lei “ainda não estava valendo”. Só recuou após a advogada Lucidalva Nascimento ameaçar telefonar para um promotor de Justiça. “Foi na marra, só assim ele nos ouviu”, relembra a defensora. Naquele dia, o marido de Cileide foi preso em flagrante e a família passou a receber proteção, até o fim do processo de divórcio.

Nascimento já atuava há muitos anos na defesa de vítimas de violência doméstica e considera que a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas. “Nos anos 80 e 90, não existiam mecanismos no arcabouço jurídico para proteger as mulheres e punir os agressores”, afirma a advogada, que hoje integra a Comissão de Igualdade Racial da OAB do Cabo de Santo Agostinho. Passadas quase duas décadas, ela avalia que um dos maiores desafios é fazer a mulher vítima de violência recuperar a confiança e a autoestima. “O saber da psicologia e da assistência social tem sido nossos principais aliados. Por isso são tão importantes os centros de referência.”

Pioneiras. Cileide foi a primeira mulher a acionar a lei que homenageia Maria da Penha – Imagem: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Bruna Valença

Fabiana Severi, professora da ­Faculdade de Direito da USP, explica que um dos grandes impactos da Lei Maria da Penha foi educar a sociedade sobre o que é violência contra mulheres no ambiente familiar. “Até pouco tempo atrás, o conceito de violência doméstica não existia. Falava-se em ‘briga de marido e mulher’, em medida corretiva contra crianças.” A partir da nova legislação, que conceituou as variadas formas de violência de gênero, foi possível avançar em outros temas, como a caracterização do feminicídio. “Até então, a morte de mulheres era algo quase autorizado pela sociedade, o marido podia agir ‘em defesa da honra’”, diz a advogada.

Foi a Lei Maria da Penha que definiu juridicamente as diferentes formas de violência contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual, financeira e patrimonial. Com o passar do tempo, a sociedade passou a compreender melhor esses conceitos. De acordo com pesquisas do Instituto DataSenado, apenas 23% dos entrevistados diziam conhecer vítimas de violência patrimonial em 2021, porcentual que saltou para 44% em 2023. A percepção da violência psicológica aumentou de 58% para 86% no mesmo período. No caso da violência moral, o índice quase dobrou, passando de 48% para 82%.

As Delegacias da Mulher, a Patrulha Maria da Penha e a Casa da Mulher Brasileira são alguns dos aparelhos públicos que surgiram depois da lei. Foi um passo importante, mas a rede de proteção ainda é insuficiente, alerta Severi. Os equipamentos são poucos e ainda estão concentrados nos grandes centros. A professora da USP acrescenta que os recursos para esses mecanismos foram drasticamente reduzidos no governo de Michel Temer e praticamente zerados na gestão de Jair Bolsonaro. A asfixia financeira impediu não só a expansão da rede, mas o próprio funcionamento das unidades que existiam. “Hoje, tentamos reconstruir um vaso quebrado com pouca cola. Existem muitas iniciativas, mas aquém do necessário.”

Em 2023, o Brasil registrou 1,4 mil feminicídios, alta de 1,4% em relação ao ano anterior

De acordo com a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, está prevista a construção de 40 novas Casas da Mulher Brasileira no próximo período. As obras de dez delas já estão em execução. Outras 21 aguardam a conclusão do processo de licitação para a liberação de repasses aos governos estaduais. Atualmente, existem apenas oito unidades em todo o País. Trata-se de um equipamento público multidisciplinar, que oferece um atendimento completo às vítimas de violência, desde o processo de escuta e encaminhamento à Justiça até o atendimento psicológico e social para reinserção na vida social.

“Além disso, estamos investindo na reestruturação das 500 delegacias especializadas que existem hoje, para depois negociar a construção e solidificação de novas unidades”, anuncia Gonçalves. A ministra também pretende expandir a rede de Centros de Referência de Atendimento às Mulheres, equipamentos que prestam atendimento psicológico, social e jurídico, além de buscar parcerias para investir nas Patrulhas Maria da Penha, principal forma de prevenção ao feminicídio. Em 2023, foram registradas 1.463 mortes por motivo de gênero no País, alta de 1,4% em relação ao ano anterior, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Relatora de um projeto que visa adaptar as delegacias comuns para atendimento de mulheres vítimas de violência, a ­deputada federal Sâmia Bonfim, do PSOL, propõe a reserva de ao menos uma sala em cada uma delas, com entrada separada, para que a equipe especializada possa trabalhar. Preferencialmente, uma equipe feminina. O projeto foi aprovado em julho na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e, agora, está em debate na Comissão de Constituição e Justiça. Mas a defesa das vítimas de violência, pondera a parlamentar, deve ir muito além das medidas protetivas. “Se não houver políticas para assegurar a empregabilidade e autonomia dessas mulheres, assistência médica adequada e campanhas de conscientização sobre os limites das relações, tudo isso acaba tendo pouca efetividade.”

Ideias. Sâmia Bonfim sugere a adaptação das delegacias comuns para acolher melhor as vítimas. Cida Gonçalves busca parcerias para ampliar as patrulhas especializadas – Imagem: Rafa Neddermeyer/ABR, Alê Bastos/Redes Sociais Sâmia Bomfim, Mariana Kaipper Ceratti/Banco Mundial América Latina e Caribe

Fundadora do Me Too Brasil, a advogada Marina Ganzarolli avalia que a Lei Maria da Penha é uma das legislações mais avançadas do mundo. Ainda assim, o Brasil patina na redução da mortalidade de mulheres e ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. “Não é aceitável, porque esse é um crime totalmente evitável”, afirma. “Quando uma mulher chega na delegacia, é comum ser questionada sobre onde estava, que roupa estava usando. Mas, se um homem é roubado, o delegado não pergunta por que ele tinha um Rolex ou andava sozinho à noite, isso é revitimizar quem sofre a violência.”

Um dos nós existentes para a correta aplicação da lei são as Unidades Judiciárias Especializadas, também chamadas de Varas de Violência Doméstica e Familiar. A advogada Larissa Cunha, mestre em Direito Processual pela USP, afirma que, das mais de 150 existentes no País, pouquíssimos respeitam a “competência híbrida da lei”. Hoje há um foco excessivo na punição criminal, enquanto outros aspectos são negligenciados, avalia. “Existem demandas cíveis, como separação ou divórcio, guarda dos filhos, pagamento de pensão, além de medidas protetivas imediatas, como encaminhar a família para uma casa-abrigo, antes de avançar para a responsabilização do agressor.”

Para Maria da Penha, a farmacêutica vítima de violência doméstica que empresta seu nome à lei, há muito para avançar no exercício pleno da cidadania e no livre acesso à Justiça para as mulheres. Em uma mensagem gravada em vídeo, ela acrescenta: “Mesmo diante de grandes desafios, eu acredito na força da integração das competências de todas e todos que atuam em defesa dos direitos das mulheres. Eu acredito na força do bem, do bem que gera ações libertadoras, promove a esperança e concretiza os sonhos de quem quer viver para ser feliz. Acredito no fim do feminicídio e continuarei a me unir a quem também acredita. Lutarei sempre ao lado de quem também luta”. •

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marco histórico ‘

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