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Se juntar, o bicho foge

Associações de vítimas de variadas tragédias unem-se para cobrar reparações justas e o fim da impunidade

Se juntar, o bicho foge
Se juntar, o bicho foge
Imagem: Marie Hospital/AFP
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Bernardo sempre sonhou em ser jogador de futebol. Ainda criança, aos 9 anos, começou a treinar na base do Avaí, em Florianópolis. ­Duas vezes por semana, seu pai, Darlei Pisetta, o levava para treinar na capital catarinense, a cerca de 170 quilômetros de Indaial, onde viviam. No ano seguinte, o garoto despediu-se da família e passou a morar em Curitiba, após ser convidado a integrar a categoria sub-15 do ­Athletico Paranaense. Aos 14 anos, já estava no Rio de Janeiro. Havia sido recrutado pelo Flamengo, seu time do coração. “Ele era muito determinado, tinha os pés no chão”, lembra o pai. O sonho do jovem goleiro, com 1,85 metro de altura, foi tragicamente interrompido na madrugada de 8 de fevereiro de 2019, quando um incêndio no Ninho do Urubu, como é conhecido o centro de treinamento rubro-negro, matou Bernardo e outros nove atletas, com idades entre 14 e 17 anos.

O episódio teve forte repercussão na mídia e comoveu o Brasil, mas até hoje ninguém foi condenado na esfera criminal pelo incêndio, a despeito das robustas evidências do descaso do clube com a segurança das suas instalações e da negligência das autoridades responsáveis pela fiscalização. Para tentar reverter esse cenário de impunidade, lamentavelmente corriqueiro no País, vítimas e sobreviventes de diferentes tragédias resolveram unir forças. Em janeiro, cinco associações marcaram presença nos protestos em Brumadinho, para reivindicar reparação aos atingidos pelo rompimento da barragem da Vale no município mineiro há cinco anos. Entre as entidades participantes figuram aquelas que representam as famílias devastadas pelo incêndio da Boate Kiss, na cidade gaúcha de Santa Maria (2013), pelo desastre provocado pela Samarco em ­Mariana (2015) e pela imperícia da Braskem na exploração de uma mina de sal-gema em ­Maceió, que desde 2018 desalojou mais de 40 mil famílias após o solo começar a ruir.

A união não se restringe, porém, a gestos de solidariedade em atos públicos. Em 15 de abril, essas associações de vítimas solicitaram conjuntamente uma audiência à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que deve ser realizada em julho deste ano. O objetivo, segundo o documento, é denunciar as graves e contínuas violações de direitos humanos promovidas por particulares e empresas de grande porte. “Enquanto esse sistema de Justiça continuar a perpetuar a impunidade, tragédias continuarão a suceder porque não há receio de empresas irresponsáveis que continuam com o desrespeito à vida humana e ao meio ambiente, e contam com a conivência criminosa do Poder Público com sua omissão antes e depois da ocorrência de crimes contra a vida”, ressalta o texto.

A União das Associações de Vítimas pretende atuar junto aos poderes Judiciá­rio e Legislativo, pressionando para que medidas sejam adotadas, a fim de solucionar os processos que se arrastam nos tribunais, bem como buscar alternativas para evitar que novas tragédias aconteçam. “Não estamos exatamente diante de fatalidades. Há intervenção humana e autores conhecidos por trás das trágicas histórias que abalaram o País nos últimos dez anos”, observa Andressa Rodrigues, presidente da entidade que representa as famílias atingidas pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho.

Recém-criado, o grupo solicitou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma audiência para denunciar violações

Na Argentina, a experiência da ONG Familias por la Vida, integrada por parentes e sobreviventes do incêndio da Cromañón, uma casa de show nos arredores de Buenos Aires que pegou fogo em 2004, deixando o dramático saldo de 194 mortes, contribuiu para grandes avanços na legislação. As autoridades argentinas passaram a intensificar as fiscalizações em bares e casas noturnas. Cerca de 470 estabelecimentos já foram fechados. A entidade mantém uma linha direta para receber denúncias, que rapidamente são encaminhadas aos órgãos responsáveis. Além disso, foram firmados convênios de cooperação com governos municipais. A tragédia da Cromañón não ficou impune: O responsável pelo evento foi condenado a 18 anos de prisão e o dono da boate, a cinco anos. Três funcionários públicos acabaram presos. Um subcomissário, algo como um delegado de polícia, e dois chefes dos Bombeiros também foram responsabilizados.

No Brasil, o cenário é radicalmente distinto. O documentário O Ninho: Futebol e Tragédia, do cineasta Pedro Asbeg, recém-lançado pela Netflix, expõe todo o descaso do Flamengo e a negligência das autoridades. Numa das cenas, uma mãe desabafa na mesa de negociação com o clube: “Aqui, o réu senta na cadeira da Justiça e decide qual será sua pena”.

As condições de moradia dos jovens atletas eram precárias. Um contêiner sem ventilação servia de alojamento, sem alvará nem certificação do Corpo de Bombeiros. O Flamengo foi autuado 31 vezes. A rede elétrica não recebia manutenção nem reformas por determinação dos dirigentes do clube. O argumento era de que, no futuro, seria construído um novo espaço para abrigá-los. A irresponsabilidade dos cartolas destruiu os sonhos daqueles adolescentes e devastou suas famílias. O fogo teve início pelo superaquecimento de um aparelho de ar-condicionado. As janelas eram gradea­das e havia uma única saída. Os garotos morreram sufocados.

Nove famílias fecharam acordos com o clube. Os contratos têm, porém, cláusulas de confidencialidade, que as impedem de revelar os valores das indenizações pagas. Negociar com advogados do clube era como reviver o drama da morte do filho todos os dias, comenta o pai do goleiro ­Bernardo. “Fomos obrigados a nos render às investidas do Flamengo”, diz ­Pisetta. “Não aguentávamos mais falar em precificação de vidas humanas.” •

Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Se juntar, o bicho foge’

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