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Brasil, mostra a sua cara

A mudança econômica e social em curso desafia as velhas interpretações do País, afirma Marcio Pochmann

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Sistema. Para o presidente do IBGE, haveria economia e ganhos de eficiência se o instituto coordenasse todos os dados nacionais – Imagem: Rodrigo Cabral/MCTI
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O presidente do IBGE, Marcio Pochmann, voltou ao noticiário por causa de um factoide. O mapa-múndi com o Brasil no centro, lançado para marcar a presidência do ­País no G20, insuflou um debate entre geógrafos e despertou o perpétuo viralatismo nacional. O papel da instituição, minimiza Pochmann, é produzir informações. Cabe à sociedade interpretá-las. O economista tem outras preocupações mais importantes, uma delas é preparar o instituto para as próximas décadas. Outra, produzir dados mais precisos que permitam entender as transformações sociais, demográficas, econômicas e culturais do País. Segundo Pochmann, mudou a dinâmica entre litoral e interior, enquanto a desindustrialização acelerada e precoce abriu margem para um novo “sistema jagunço”, terreno fértil para o banditismo social e o fanatismo religioso. “Atravessamos uma época de mudança espetacular”, avalia. A seguir, os principais tópicos. A íntegra está no canal do YouTube de CartaCapital.

O mapa-múndi e as reações

O lançamento do 9º Atlas, referente a 2023, contemplou uma infinidade de mapas, entre eles o que coloca o Brasil no centro do mapa-múndi. Não é algo inédito no IBGE. Em 2006, havia sido apresentado um mapa equivalente. É plenamente possível, não está contra nenhuma métrica geográfica. Outros países fizeram, fazem. Entendemos que era importante, neste ano de 2024, pelo fato de o Brasil liderar o G20, apresentar essa representação com destaque para as nações que compõem o grupo. Fizemos antes a apresentação para a mídia tradicional e não gerou nenhuma divulgação, mas o assunto ganhou destaque mais tarde nas redes sociais e gerou intenso debate. O papel do IBGE é produzir conhecimento, informações, dados. Não interpretamos as informações. Quem faz isso é a sociedade, os governos, a iniciativa privada. É plenamente natural em um país democrático. Pode até demonstrar a ignorância de alguns, mas faz parte do debate. É enriquecedor.

Polêmica. O mapa-múndi com o Brasil no centro causou certo alvoroço nas redes sociais – Imagem: Agência IBGE

A penúria no governo Bolsonaro

Estamos preocupados com o futuro do IBGE, embora não possamos esquecer o passado. A instituição sofreu muito pelas decisões tomadas a partir da segunda metade da década passada. A contagem da população em 2015 não ocorreu, por escassez de recursos, o que comprometeu as projeções ano a ano. Houve atraso do Censo agropecuário, faltou dinheiro para a modernização dos sistemas computacionais… Isso influenciou a capacidade do IBGE de produzir informações de forma mais precisa e adequada. O próprio Censo de 2022 teve menor quantidade de perguntas e isso nos impediu de mostrar um país mais complexo e diversificado. Mas esses percalços estão ficando para trás. No ano passado, houve recomposição do orçamento e, no concurso unificado, teremos 900 vagas. Nosso objetivo é preparar a instituição para a segunda metade da década.

O futuro do IBGE

Queremos restabelecer o papel que o ­IBGE desempenhava antes de 1964. Até então, a instituição era a coordenadora dos dados oficiais do Brasil, por meio do anuário estatístico. Com o golpe de 64 e a reforma administrativa de 1967, criou-se outra concepção a respeito das informações nacionais. O IBGE foi deslocado da esfera da Presidência da República para o Ministério do Planejamento. A mudança esvaziou o papel da instituição em outras áreas do governo, o que levou a uma fragmentação dos dados. Hoje, o setor público lida com informações empossadas, sem integração. Não há a mesma metodologia, a mesma fonte, os dados não são pareados. Trabalhamos por uma mudança na legislação que permita criar um sistema nacional, de integração dessas informações, que o IBGE poderia vir a coordenar como fazia entre 1936, data de sua criação, e 1964. Seria uma economia para os cofres públicos e daria agilidade ao governo, por conta da integração. O Brasil teria mais e melhores informações e ficaria menos dependente das corporações transnacionais, as Big Datas.

Massa “sobrante”. Os marginalizados foram atraídos pelo fanatismo de Canudos – Imagem: Flávio de Barros/Museu da República/IMS

A ameaça das Big Techs

O Brasil não tem soberania plena sobre seus dados. Na era da digitalização, aprofunda-se uma espécie de novo processo de subdesenvolvimento. Uma infinidade­ de informações não mais pertence aos brasileiros, é transferida para grandes corporações transnacionais que não pagam impostos aqui, não geram emprego e obtêm alta lucratividade. Das dez maiores empresas cotadas na Bolsa de Nova York, sete são Big Datas. A maioria é norte-americana. Nada contra ser dos EUA, mas lá vigora a Lei Patriota, que obriga essas companhias a repassar informações quando demandadas pelo Departamento de Estado. É gravíssimo. Assim se entende a razão de a presidenta Dilma ter sido hackeada, de dados estratégicos da Petrobras terem sido surrupiados, enfim, todas as informações que passaram pela Lava Jato. Alguns países têm o seu próprio GPS. Por que precisamos utilizar o dos Estados Unidos? As Big Techs têm mais informações sobre o País do que o IBGE e o presidente da República. Somos submetidos a um Censo ­Demográfico ­diário. Estamos, na melhor das hipóteses, sob um capitalismo de vigilância.

“Há um novo sistema jagunço”, no qual prosperam o banditismo social e o fanatismo religioso

A “cara” do Brasil atual

O País vive uma mudança de época, que inclusive coloca em xeque a interpretação de intelectuais como Euclides da Cunha, no fim do século XIX. Segundo ele, havia dois tipos de brasileiros: aqueles que viviam em regiões litorâneas, áreas de maior proximidade com a Europa, com letramento, identificados com a modernidade, e, por outro lado, aqueles do interior, caipiras, atrasados. Em 2024, cerca de 70% da população ainda reside a menos de 200 quilômetros do mar. Continua­mos a ser um país fortemente concentrado em regiões litorâneas, mas quase quatro décadas de desindustrialização moldaram a geografia do brasileiro. O Censo de 2022 indica: as cidades que mais cresceram, do ponto de vista demográfico, ficam no interior. Municípios médios, entre 100 mil e 500 mil habitantes. Quando se olham os dados do PIB municipal, identificamos uma “China”, cidades vinculadas à atividade de exportação, com ritmo de crescimento de 6% a 7% ao ano. Na outra ponta estão as ­regiões metropolitanas próximas ao litoral, com um ritmo de expansão muito contido. Essas áreas convivem com elevado desemprego e forte dependência dos programas de transferência de recursos públicos. Atualmente, algumas regiões litorâneas expressam os sinais do atraso, não mais da modernidade, com crescimento do fanatismo religioso e do banditismo social. Enquanto isso, avança a integração do Brasil com os vizinhos sul-americanos, na tentativa de se vincular cada vez mais ao Oceano Pacífico. Do ponto de vista do comércio externo, o Pacífico tornou-se mais importante do que o Atlântico. É uma transformação drástica da relação do País com o mundo. Atravessamos uma mudança de época espetacular, demográfica inclusive, com o processo de envelhecimento da população, e talvez isso não esteja tão presente no debate, na agenda das políticas públicas, do Parlamento, do Judiciário, do Executivo.

Navegar é preciso. A integração com os vizinhos sul-americanos avança. Os portos peruanos, por exemplo, vão conectar o Brasil ao Oceano Pacífico – Imagem: Presidência do Peru

O novo sistema jagunço

Vejo com preocupação o crescimento do que chamo de novo sistema jagunço. No Brasil, assistimos ao declínio do capitalismo como centralidade ocupacional, até pelo fato de o desempenho econômico nas últimas décadas ser muito frustrante, quando se analisa o período como um todo. Há, claro, diferenças entre governos, mas o ritmo de expansão do País do fim da década de 1980 para cá é muito lento. O sistema jagunço-agrário que existia no fim do século XIX, diante do baixo dinamismo do capitalismo naquele momento, produzia o que Caio Prado definia como uma “massa sobrante” inorgânica. Essa massa serviu de base para o fanatismo religioso, por exemplo, de Canudos. Ou para o banditismo social de Lampião. Havia um país à margem. Dos anos 1930 a 1980 foi um perío­do diferente: urbano, industrial. Deu-se a essa massa “sobrante” um sentido de identidade, de pertencimento, a partir dos direitos do trabalho. Na virada dos anos 80 para os 90, houve uma desconstrução desse projeto. Nos anos 80, quase dois terços das ocupações estavam vinculadas a atividades tipicamente capitalistas. Ou seja, empregos que só existem se houver lucro. Hoje representam menos de 50%, para ser mais exato, 49%. No restante, temos 11% no setor público e 40% em atividades de subsistência. Falta um conjunto de políticas que alcancem esse outro universo. A massa “sobrante”, quase sempre sem destino, é a base para a operação de um novo sistema jagunço, o banditismo social e o fanatismo religioso, que conquistam influência crescente na política e na economia. Não só nas metrópoles e nas faixas litorâneas. Na Amazônia, constata-se a penetração do crime organizado. Precisamos enfrentar esse problema, pois o País tem futuro, possui uma estrutura econômica, social, política e cultural que nos permitiria até liderar o chamado Sul global. •

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Brasil, mostra a sua cara’

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