Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Os descaminhos do Parlamento

Da criminalização do porte da maconha ao Quinquênio para os juízes, Câmara e Senado revelam descompromisso com o País

Os descaminhos do Parlamento
Os descaminhos do Parlamento
Alcolumbre em sessão da CCJ no dia 13 de março de 2024. Reunião aprovou PEC das Drogas. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
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O Congresso e suas casas, Câmara e Senado, persistem na insensatez de descaminhos e da falta de compromissos com a sociedade, com o Brasil e com a necessidade de modernização. Seu compromisso parece ser com o descontrole fiscal, os privilégios, a manutenção das desigualdades abissais e a chantagem política para se apossarem de recursos orçamentários. Os presidentes das duas Casas, em sua falta de responsabilidade em colocar as atividades legislativas em linha com as necessidades prementes do Brasil, tornam-se os desbravadores dos descaminhos.

São inúmeras as propostas que agridem os interesses sociais. Propostas que encontram abrigo em comissões, nas presidências das Casas e nos plenários. Dentre as várias que tramitam e que ­constroem o retrato da mediocridade legislativa tomem-se os casos da PEC que criminaliza o porte de drogas para uso pessoal, a aprovada lei do marco temporal, a que proíbe a visita à família dos presos em regime semiaberto e a lei das desonerações fiscais para setores privilegiados da economia.

O Senado aprovou a PEC da criminalização do porte de drogas no mesmo momento em que o STF deu um passo decisivo para descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal. O que tem sido veiculado é que a ação do Senado tem por objetivo contrapor-se à iniciativa do STF. Se é esse o caso, o Senado e seus dirigentes são merecedores do desprezo da sociedade: brincam de disputa infantil de poder com um grave problema social.

A atual Lei de Drogas, que ainda mantém a criminalização, é a que mais encarcera no Brasil. A lei não distingue tráfico de porte. Dos processados por ela, 68% são negros. O Brasil e os senadores sabem que a polícia, em regra, faz vista grossa no caso dos brancos que portam pequenas quantidades de droga e apreende negros na mesma condição.

Além disso, essa situação agrava o problema carcerário do Brasil, já muito grave. O sistema carcerário, além de desumano e brutal, transformou-se numa escola do crime. É para essa escola que o Estado conduz milhares de jovens, pobres e negros, apreendidos com pequenas quantidades de drogas.

Os senadores, em sua irresponsabilidade, sabem que, em vez de resolver o problema da segurança pública, agravam a insegurança e reforçam a criminalidade. Trata-se de um crime que o Senado promove contra a sociedade. O mais grave de tudo é que a PEC da criminalização é patrocinada por Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, que se arvora de liberal e democrata, mas que capitula às demandas do conservadorismo golpista. Outra PEC vergonhosa que o presidente do Senado patrocina é a do Quinquênio, com privilégios indecorosos a juízes e procuradores.

Com a PEC aprovada pelo Senado, o Brasil coloca-se no caminho do obscurantismo abandonado pela maioria dos países da América do Sul. Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Venezuela e Uruguai não criminalizam o porte de drogas para uso pessoal. O México e vários estados norte-americanos também não criminalizam. Na Europa, Alemanha, Espanha, Itália, Holanda e Portugal, entre outros, também abandonaram o obscurantismo para seguir na civilidade. O Senado, contudo, prefere alinhar o Brasil com Indonésia, Irã, Arábia Saudita e Coréia do Norte, entre outros, onde o porte de drogas é tratado com leis cruéis e draconianas.

De acordo com relatório da Human ­Rights Watch, nos estados norte-americanos em que o porte de drogas para uso pessoal é criminalizado, seus efeitos são devastadores. Vidas de indivíduos e de famílias são arruinadas, grande discriminação racial nas abordagens e nas prisões e efeitos graves sobre a saúde dos cidadãos. Aqueles criminalizados por porte de drogas sofrem uma vasta interdição de outros direitos, como emprego, programas de saúde, assistência social e acesso a programas de habitação. O estigma social acompanha-os por toda a vida. Aqui no Brasil, o quadro de ruína que esse tipo de política produz não é tão diferente.

Os defensores da criminalização costumam criar discursos falsos para confundir a opinião pública. Identificam a descriminalização com a liberalização, coisas muito diferentes. Assim, agem para tirar os usuários da esfera da saúde pública para levá-los às esferas criminal e penal, agravando o problema penitenciá­rio e de segurança pública.

Ao prender usuários como traficantes, além de encher os presídios com gente que não cometeu crime, as polícias e o sistema judiciário adotam vieses de discriminação de raça e de renda para prender, julgar e condenar. Negros e pobres são as principais vítimas desses mecanismos injustos e desumanizadores adotados na esfera legislativa e nas ações do Estado por uma elite predadora que controla e coloca os recursos públicos para atender a seus interesses. •

Publicado na edição n° 1308 de CartaCapital, em 01 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os descaminhos do Parlamento’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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