

Opinião
Constituição e Forças Armadas
Os militares são subalternos ao poder civil, como bem frisou o ministro do STF Flávio Dino


Aos 60 anos do golpe de 1964, em nome da verdade histórica e para rechaçar falaciosas incursões de teóricos do autoritarismo, é fundamental consignarmos que nossa Constituição, genuinamente democrática, dispôs, no seu artigo 142, que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia, na disciplina e sob a autoridade do presidente da República, destinando-se à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.
É preciso rejeitar, de uma vez por todas, tormentosas e ruidosas opiniões, que ganharam ápice nos anos do governo Bolsonaro, enaltecedoras da ditadura e que admitem uma suposta função de poder moderador das Forças Armadas. Aliás, referida visão é mais uma contribuição problemática de uma parcela da intelectualidade jurídica no Brasil que ilustra como o golpismo não se estrutura apenas pela reunião de ignorantes ou pela circulação de fake news.
Independentemente da linhagem de pensamento do operador do Direito, referido entendimento é contrário a qualquer intepretação possível da Constituição, seja por meio de uma análise isolada do artigo 142, seja globalmente considerado o texto constitucional. A partir da primeira Constituição Republicana, em 1891, abandonou-se a concepção de mediação de conflitos entre poderes constituídos por meio de um poder moderador, nos moldes implementados pela autoritária Constituição do Império de 1824.
Com efeito, nossa Constituição não outorgou qualquer posição às Forças Armadas na implementação de políticas públicas, estas incumbidas ao Executivo, ou mesmo qualquer função moderadora, em detrimento dos poderes constituídos e do nosso próprio Estado democrático e de Direito. Ao contrário, nossa Constituição, espelhando-se no movimento constitucionalista antifascista do pós-Guerra europeu, é um antídoto às descabidas pretensões de sobreposição da democracia ao poder das armas. Nossa Constituição é uma semente contra a ditadura e, como tal, inadmite qualquer protagonismo das Forças Armadas nos rumos da pólis.
Consoante previsão do artigo 1º da Constituição, nossa República Federativa constitui-se em Estado Democrático de Direito e possui como fundamentos, entre outros, o pluralismo político, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Ademais, conforme o parágrafo único do mesmo dispositivo, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.
Por fim, o artigo 2º da Constituição dispõe que são poderes, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Portanto, seria um contrassenso nossa Constituição, que se inspirou no movimento constitucionalista antifascista, outorgar qualquer função moderadora às Forças Armadas, em detrimento dos poderes constituídos e do próprio Estado democrático e de Direito. A irrenunciabilidade democrática da nossa Constituição inadmite ditadura ou mesmo qualquer protagonismo que se pretenda atribuir às Forças Armadas, órgão estatal que inexiste senão nos quadrantes da Constituição.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.457, já formou a maioria necessária para consagrar o entendimento segundo o qual às Forças Armadas não cabe qualquer ingerência sobre os poderes constituídos. Consoante maioria formada, as Forças Armadas são órgãos de Estado e não de governo, ao passo que a missão institucional delas na defesa da pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de qualquer poder moderador.
Ainda quanto ao referido julgamento, rememorem-se os termos do brilhante voto do ministro Flávio Dino, segundo o qual “não existe, no nosso regime constitucional, um poder militar. O poder é apenas civil, constituído por três ramos ungidos pela soberania popular, direta e indiretamente. A tais poderes constitucionais a função militar é subalterna”.
Nos 60 anos do golpe militar que causou fissuras que jamais serão cicatrizadas, é importante reafirmar o óbvio. Investidas autoritárias sempre encontraram, no Brasil e no mundo, teóricos capazes de envernizá-las e legitimá-las. Aqueles que não ajudam nessa empreitada poderiam apenas não atrapalhar com suas interpretações equivocadas e perigosas. A Constituição de 1988 foi um importante marco no processo civilizatório brasileiro. Mantê-la de pé, diante do ambiente de polarização extrema e virulenta que vivemos, é uma tarefa de todos. •
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Constituição e Forças Armadas’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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