Mundo
Culpe o mensageiro
Os democratas andam irritados com a cobertura dos meios de comunicação da corrida presidencial


Quando uma pesquisa de opinião do jornal The New York Times revelou que a maioria dos eleitores de Joe Biden o considera velho demais para ser um presidente eficaz dos Estados Unidos, o apelo à ação foi rápido, mas não dirigido ao democrata. “Ao amplificar pesquisas presidenciais falhas, recusar-se a informar sobre os problemas cognitivos de Donald Trump, o NYT é tendencioso a favor de Trump”, foi um exemplo de reação nas redes sociais. “Se você tem uma assinatura do NYT, cancele-a.”
O coro irado dirigido a uma das instituições de comunicação mais célebres dos Estados Unidos acompanhou acusações ao sistema jurídico por não ter conseguido deter Trump. Apesar de muitos pensamentos otimistas, os resultados das recentes eleições primárias deixaram claro que o país caminha para uma revanche entre Biden e Trump em novembro. É indiscutível que as pesquisas de opinião e a cobertura da mídia são imperfeitas e que as rodas da justiça giram lentamente. Quaisquer que sejam os méritos dos argumentos, os críticos afirmam, porém, que os democratas correm o risco de entrar num jogo de acusações que os desvia da missão central: derrotar Trump nas urnas.
Tara Setmayer, assessora sênior do Projeto Lincoln, um grupo anti-Trump, disse: “A comiseração não é uma estratégia, e os democratas precisam parar de ter acessos de raiva política e trabalhar para se unir e reeleger Joe Biden. Os tribunais, a mídia, os comediantes na tevê não vão nos salvar. Portanto, a lamentação e a reclamação sobre esses aspectos serem injustos não são uma estratégia para a vitória”.
Há muita atenção à idade avançada de Biden e pouca às propostas fascistoides de Trump
Entre alguns democratas, há muito existe o anseio por um salvador que detenha a marcha de Trump. As esperanças estavam depositadas no procurador especial Robert Mueller, mas sua investigação sobre a Rússia foi fraca e não conseguiu derrubar o presidente. Dois impeachments se passaram e o Senado perdeu uma oportunidade histórica de impedir que o republicano se candidatasse novamente. Agora o ressentimento se concentra na Suprema Corte e no procurador-geral (ministro da Justiça), Merrick Garland, por demorarem a responsabilizar Trump por sua atuação no ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio. O tribunal emitiu uma decisão unânime de que o Colorado e outros estados não têm o poder de retirá-lo da votação por envolvimento numa insurreição.
Um processo do Departamento de Justiça com a alegação de que o então presidente tentou anular as eleições de 2020, marcado para começar nesta semana, foi adiado até a Suprema Corte decidir se Trump tem imunidade jurídica. E um caso de interferência eleitoral na Geórgia também está suspenso, pois a promotora Fani Willis enfrenta denúncias de conflito de interesses por causa de uma relação romântica. Na Flórida, onde é acusado de mau uso de documentos governamentais confidenciais, o republicano conseguiu um juiz amigável que deu sinais da intenção de protelar o julgamento. Isso significa que o caso que provavelmente começará primeiro é um em Nova York, pelo fato de Trump ter pago a uma estrela de cinema adulto durante a campanha eleitoral de 2016, amplamente retratado na mídia como o mais fraco dos quatro.
Entretanto, tal caso teria sido devastador para outro candidato em qualquer momento da história. Allan Lichtman, professor de História na Universidade Americana em Washington, afirmou: “Ele será julgado por 34 acusações criminais em menos de três semanas, e a mídia mal indicou a importância disso. ‘Oh, é apenas um julgamento por compra de sigilo.’ Não, não é. Ele não está sendo julgado por propina. Ele está sendo julgado por fraude eleitoral, não apenas por pagar pelo sigilo (da atriz), mas por enganar a população, ocultando o fato como uma despesa comercial”.
A outra “América”. Segundo metade do país, ele é o salvador – Imagem: Kamil Krzaczynski/AFP
Lichtman acrescentou: “Se fosse qualquer um que não Trump, qualquer outro candidato presidencial, seria o julgamento do século, e a mídia estaria gritando que se o candidato fosse condenado deveria ser expulso da campanha. Em vez disso, eles deturparam e banalizaram este caso”.
Trump há muito desafia as ortodoxias da mídia. Durante a campanha de 2016, o New York Times usou a palavra “mentira” numa manchete, medida que teria sido considerada crítica e editorializada na era pré-Trump. Em 2019, o jornal mudou a manchete “Trump apela à unidade versus racismo”, após protestos de leitores e políticos progressistas.
A televisão também tem dificuldade para encontrar a abordagem certa. Houve muita introspecção sobre como a ampla cobertura dos comícios e tuítes da campanha de Trump em 2016 lhe rendeu 5 bilhões de dólares em publicidade gratuita, segundo a empresa de monitoramento mediaQuant. As redes de notícias a cabo agora reduziram drasticamente a cobertura dos discursos do republicano, embora alguns comentaristas afirmem que o pêndulo oscilou demais na direção oposta, argumentando que os eleitores precisam ver suas piadas absurdas, as gafes verbais e a agenda extremista.
Com as eleições primárias da Superterça, em 5 de março, a abrir caminho para mais um confronto entre Biden e Trump, alguns acusam os meios de comunicação de se concentrar demais nas pesquisas e não o suficiente no que está em jogo, tratando Trump como apenas mais um candidato político, e não uma ameaça existencial. Dizem que o foco intenso na idade de Biden – ele tem 81 anos – é extremamente desproporcional se comparado com o autoritarismo de Trump e as 91 acusações criminais.
Tara Setmayer, que também atuou como diretora de comunicações no Capitólio, disse: “A mídia claramente não aprendeu a lição de 2016 ou 2020 sobre como cobrir Donald Trump. Esta eleição não é um páreo convencional. Não há nada de normal nela, portanto, ao cobrir igualmente Biden e Trump, minimiza-se o comportamento, os comentários e os planos consideravelmente perturbadores de Trump para o futuro”. Setmayer prossegue: “Os democratas têm uma queixa legítima sobre a forma como a mídia aborda os dois lados. Os meios de comunicação não devem ter qualquer obrigação de contar os dois lados de uma mentira ou uma teoria da conspiração ou o desejo do principal candidato presidencial de rasgar a Constituição e se tornar imediatamente um ditador, coisas que Donald Trump disse que faria”.
A Justiça, “leniente” com o republicano, também não escapa às críticas
A pesquisa do New York Times/Siena College foi realizada com 980 eleitores registrados em todo o país, em telefones fixos e móveis. Descobriu-se que 61% daqueles que apoiaram Biden em 2020 acham que ele está “simplesmente velho demais” para ser um presidente eficaz. Um artigo que acompanhava a pesquisa no Times trazia o título: “Maioria dos eleitores de Biden em 2020 agora diz que ele está velho demais para ser eficaz”.
Larry Jacobs, diretor do Centro para o Estudo de Política e Governança na Universidade de Minnesota, acha uma pergunta imparcial. “A mídia não está aí para ajudar nenhum candidato. Joe Biden é o titular, e há questões legítimas sobre um homem de 81 anos que repetidamente apresenta dificuldades em público. Uma pesquisa que faça perguntas sobre isso é totalmente imparcial.”
Outros têm uma visão muito diferente. Para Jeff Jarvis, professor de Jornalismo da Escola de Pós-Graduação em Jornalismo Craig Newmark da CUNY, “a decisão de fazer a pergunta, a forma como ela é feita e a quem é feita e como o resultado é reproduzido estão cheios de intenções. As pesquisas tornam-se uma profecia autorrealizável: vamos definir uma agenda e dizer tudo, depois faremos uma pesquisa e agiremos como se isso fosse novidade, quando é apenas uma reação ao que já fizemos. Esse é o caso da idade”. Mais: “O New York Times, que tem sido o nosso melhor exemplo e que critico porque quero que seja ainda melhor, é terrivelmente frustrante porque não sabe cobrir a ascensão do fascismo, e é isso que esta história realmente é. Nem sabe abordar a essência do motivo pelo qual isso está acontecendo, que é a questão racial”.
Espinhos. O New York Times quis saber se os eleitores acham Biden em condições de cumprir um segundo mandato – Imagem: iStockphoto
Os defensores do New York Times salientam que saíram longas reportagens sobre os planos de Trump para um segundo mandato e o que isso significaria para os Estados Unidos e para o mundo. Alguns comentaristas alertam que os ataques dos democratas à mídia poderão sair pela culatra e levar a acusações de que disparam contra o mensageiro.
Nem mesmo os comediantes estão imunes. Quando Jon Stewart voltou ao The Daily Show no Comedy Central e espetou Biden e Trump como os dois candidatos presidenciais mais idosos da história, Mary Trump, sobrinha e crítica feroz do ex-presidente, escreveu no X: “Não apenas a retórica de Stewart de que ‘os dois lados são iguais’ não tem graça, como é um potencial desastre para a democracia”. Stewart respondeu em seu programa seguinte: “Acho que, como diz o famoso ditado, ‘A democracia morre na discussão’… Nunca foi minha intenção dizer em voz alta o que eu via com meus olhos e depois com meu cérebro. Posso fazer melhor que isso”.
Se a história servir de guia, não há um cavaleiro de armadura brilhante vindo ao socorro dos democratas. Eles terão de vencer pelo mérito em 5 de novembro. Henry Olsen, integrante sênior do grupo de pensadores Centro de Ética e Políticas Públicas, em Washington, observou: “Os democratas quiseram usar todos os truques possíveis para derrotar, destituir ou deter Trump desde 2016, e nada mudou nesse sentido. O fato é que ele é um candidato líder, apoiado por quase metade do país. A ideia de que ele representa uma ameaça à democracia não é infundada, mas também é extremamente exagerada. Se a mídia fizesse o que muitos democratas querem, estaria efetivamente agindo como os meios de comunicação da Hungria de Viktor Orbán, então a ironia pode ser reveladora”. •
Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Culpe o mensageiro’
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