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É urgente criar instrumentos jurídicos internacionais para proteger os rios voadores da Amazônia

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Conexão. Há um extraordinário ecossistema, a partir da Amazônia, que garante umidade e regularidade das chuvas na América do Sul – Imagem: iStockphoto
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Em 22 de março, completamos 30 anos da implementação do Dia Mundial da Água, criado durante a Conferência Rio 92 das Nações Unidas. Naquela época, as preocupações focavam o sanea­mento e a proteção de ecossistemas de produção hídrica. A pauta climática saía do estado embrionário do campo de pesquisas com fortes perspectivas de construir acordos internacionais. Passados 30 anos, estamos em plena emergência climática. O contexto mudou quase repentinamente. Na última década, a ONU impulsionou várias iniciativas sob o tema e 2013 foi escolhido como o ano de Cooperação para a Água. Em 2024, o tema do Dia Mundial foi “Água e Paz”. A preocupação é que a disputa por recursos naturais venha a se acirrar diante da escassez agravada pela mudança climática.

Mikhail Gorbachev afirmava que a ­disputa por recursos naturais demandaria esforços pela paz. O líder da antiga União Soviética tinha acesso a prognósticos sobre possíveis cenários futuros de disputas por água no século XXI e afirmava abertamente sua preocupação com a perda de multilateralismo colaborativo entre as nações. Cerca de 3 bilhões de seres humanos compartilham o total de 60% dos corpos transfronteiriços de água doce. São 276 bacias de água doce e um número semelhante de aquíferos. ­Gorbachev escreveu: “Em um mundo onde há escassez, os recursos hídricos compartilhados estão se tornando instrumento de poder, incentivando a concorrência, tanto em nível nacional quanto entre os países. A luta pela água tem contribuído para o aumento das tensões políticas e o agravamento dos impactos nos ecossistemas”.

Tinha razão, pois os acordos eram de difícil consolidação. A Convenção das Nações Unidas de 1977 sobre o Direito dos Usos Não Navegáveis dos Cursos de Água Internacionais é o único tratado que rege os recursos de água doce compartilhados. Seu processo de construção demorou décadas para ser concluído.

Gorbachev defendia a elaboração de instrumentos jurídicos internacionais protetivos. Em setembro de 2009, durante a conferência da ONU sobre água e saneamento, em Nova York, defendeu a adoção de um tratado internacional: “A ratificação de tal convenção pelos integrantes das Nações Unidas daria a todos um instrumento jurídico para defender seu direito à água potável e ao saneamento e obrigaria os governos a garantir que ela seja aplicada”.

Em 28 de julho de 2010, a Assembleia-Geral da ONU declarou que a água limpa e segura e o saneamento são um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos. Finalmente, em 17 de dezembro de 2015, reconheceu que água e saneamento são um direito humano fundamental.

Há forte interdependência hídrica fronteiriça nas bacias amazônica, do Rio Paraná e de dezenas de corpos d’água

Durante o Fórum Alternativo Mundial da Água de 2018, instituições da sociedade civil de Brasil, Argentina e México consolidaram um Termo de Referência para Água como Direito Humano Fundamental. O documento aponta prioridades no contexto sul-americano: a proteção ecossistêmica para a sustentabilidade hídrica continental da América do Sul, dos Andes ao Oceano Atlântico.

Há forte interdependência hídrica fronteiriça nas bacias Amazônica, do Rio Paraná e de dezenas de corpos d’água. Além das fronteiras físicas, há um formidável compartilhamento atmosférico de água no continente sul-americano, um extraordinário ecossistema que garante umidade e regularidade pluviométrica continental, os rios voadores da Amazônia.

Impulsionada pelas circulações atmosféricas da cédula de Hadley, a umidade é transposta do Equador para os trópicos, em processo de contínua recirculação. Dessa forma, a umidade da Amazônia, impulsionada pelo corredor atmosférico, ricocheteia nos Andes e retorna para os trópicos, abastecendo com chuvas da Amazônia à bacia do Plata, beneficiando Bolívia, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, e em maior ou menor grau todos os biomas brasileiros.

Essa bacia atmosférica transcontinental não goza de proteção legal, apesar da proposta do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, protocolada e explanada em 2018 ao Mercosul, para adoção de mecanismo protetivo nos moldes do Tratado do Aquífero Guarani.

As primeiras sinalizações políticas foram de que o Brasil não desejaria criar mecanismos que ensejassem cobranças de seus vizinhos. De outro lado, representantes dos legislativos de Uruguai e Argentina afirmaram que a defesa de um ecossistema como os rios voadores dá concretude à existência da própria área ambiental do Mercosul.

Proteger a água demanda paz e colaboração, seja em aspectos nacionais ou regionais. Há notícias globais otimistas sobre cooperação hídrica. Em uma análise de 263 das 310 bacias hidrográficas internacionais, a Universidade do ­Oregon concluiu que “os Estados são muito mais propensos a cooperar sobre a água compartilhada do que ir para a guerra”.

Há variáveis a considerar. O aquecimento global agrava a escassez de água em um momento em que a demanda tem aumentado, devido ao crescimento econômico e ao inchaço populacional. As mudanças climáticas podem ­desencadear um declínio adicional de 20% a 40% na disponibilidade de alimentos e água, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. O equacionamento de tensões demandará instituições fortes e democráticas. A diplomacia climática e hídrica exercerá importante papel no multilateralismo do futuro, especialmente se o agravamento climático atingir proporções de segurança alimentar. Em pronunciamento no Conselho de Segurança sobre diplomacia preventiva e águas transfronteiriças, ­António ­Guterres, secretário-geral da ONU, disse que a demanda por água doce deve aumentar mais de 40% até a metade do século e que as tensões pelo acesso estão aumentando em todas as regiões. A defesa de Gorbachev de lançar pilares com regramento jurídico que permita avançar em acordos pela água, baseados em justiça e paz, faz, portanto, todo o sentido.

Podemos concluir que Água e Paz, adotado como tema pela ONU, dependerá da semeadura do multilateralismo colaborativo baseado em justiça, solidariedade, gestão democrática e diplomacia. Nesse sentido, dar vida a um instrumento jurídico internacional capaz de proteger os rios voadores da Amazônia tornaria real o exemplo de compartilhamento que nos é trazido pela própria natureza. •


*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

Publicado na edição n° 1303 de CartaCapital, em 27 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cuidado compartilhado’

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