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Só não fogem os preguiçosos

Em ‘Fuga da Sibéria’, Liev Trotski relata, de forma potente, sua deportação para Obdorsk, cidade do Círculo Polar Ártico, em uma viagem iniciada em 1907

Só não fogem os preguiçosos
Só não fogem os preguiçosos
Trotski equilibra-se entre a aventura e a atenção para a paisagem natural e os homens – Imagem: Arquivo/Levo Rezymmy
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O livro de Liev Trotski que sai agora no Brasil, Fuga da Sibéria, apresenta uma inusual condensação de temas e elementos, amplificados em suas qualidades intrínsecas justamente pela surpresa da combinação. Trata-se tanto de um diário quanto de um relato de viagem, embora seja também documento histórico, descrição etnográfica e reflexão ensaística sobre os caminhos políticos e ideológicos da Rússia do início do século XX.

Por conta da Revolução de 1905, Trotski e outros 14 acusados foram condenados à perda dos direitos civis e à deportação perpétua para a Sibéria, sob vigilância. A viagem para Obdorsk, uma cidade situada no Círculo Polar Ártico, foi iniciada em janeiro de 1907. Depois de percorrer um trecho de trem, o grupo de ­detentos foi transferido para 40 trenós puxados por cavalos, com uma escolta de 52 soldados. Essa é a primeira parte de Fuga da ­Sibéria, que Trotski chama de “Ida”.

Fuga da Sibéria – Liev Trotski. Tradução: Letícia Mei. Ubu Editora (160 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

A segunda parte, a “Volta”, é o registro da fuga de Trotski, iniciada antes mesmo da chegada ao destino final. A fuga, contudo, não é apenas uma decisão arriscada ou o material para o futuro relato de aventuras, ela é também um elemento de definição da integridade do sujeito: “Só os preguiçosos não fogem”, escreve Trotski ainda na ida, e continua: “Consequentemente, a massa principal de exilados é formada por um público medíocre, politicamente indefinido e aleatório”.

Por conta disso, há um elemento psicológico determinante para a “fuga da Sibéria” do autor, uma vez que o que está em jogo não é somente a sua sobrevivência naquela viagem específica, mas também a construção e manutenção de uma persona, da figura de um líder que se coloca à altura das circunstâncias.

O equilíbrio entre a aventura e a responsabilidade fica a cargo do olhar atento de Trotski aos detalhes e sua habilidade para transformá-los em narrativa. “Em muitos lugares”, escreve, “os exilados políticos ganham a vida com os nativos: recolhem e limpam as pinhas de cedro, pescam, coletam frutas silvestres, caçam.”

Mais adiante, na parte da “Volta”, Trotski dedica-se à observação das renas, que salvam a vida de todos com sua força, sua carne e suas peles. “No início, as renas, assim como os ostíacos, pareciam-me todas iguais”, escreve. Mas ele logo percebe “que cada uma das sete renas tinha sua própria fisionomia”, e aprende a distingui-las: “Às vezes, sinto ternura por esses animais extraordinários que já me aproximaram quinhentas verstas da ferrovia”.

Em paralelo à fuga, portanto, Trotski treina seu olhar, sua sensibilidade e sua capacidade de ler pessoas e situações em poucos segundos. Um dos soldados da escolta na ida “é uma criatura extraordinariamente rude e cruel”, cujo “prazer maior” é “empurrar um menino cocheiro”. Já durante a fuga, Trotski observa a cabeça descoberta de seu único acompanhante, Nikífor, o condutor, “os pelos brancos de rena apinhavam-se em sua cabeça ruiva desgrenhada, e parecia que ela estava coberta de gelo”.

A estrada da fuga é “implacável” e, quando olha para trás, ele vê o “vento encobrindo a trilha estreita que nossos trenós acabaram de traçar”. É inegável que parte da força de Fuga da Sibéria nasce de um involuntário apelo anacrônico ao leitor – nós sabemos quem será Trotski e como sua vida e morte serão marcadas pela ideia da “fuga”. Por outro lado, a potência narrativa do relato permite que esse seja apenas um dos elementos de uma experiência de leitura instigante e renovadora. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

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Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Só não fogem os preguiçosos ‘

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