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Ensaio sobre o descaso

Cinco anos após o incêndio ocorrido no alojamento dos atletas da base do Flamengo, no Rio, uma reportagem de fôlego esmiúça a gênese da tragédia

Ensaio sobre o descaso
Ensaio sobre o descaso
Investigação. Daniela passou os últimos dois anos debruçada sobre o caso e sobre a memória afetiva das famíias dos garotos – Imagem: Leo Aversa e Lucas Merçon/Fluminense F.C.
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O ano de 2019 foi ambivalente para o Clube de Regatas do Flamengo. O time principal conquistou o Campeo­nato Carioca, o Brasileirão e a tão sonhada Libertadores da América, depois de 38 anos de espera. Mas, fora das quatro linhas, o clube viveu uma tragédia, com o incêndio no Centro de Treinamento Ninho do Urubu, em Vargem Grande, Zona Oeste do Rio.

Na madrugada de 8 de fevereiro de 2019, 24 atletas que haviam se reapresentado ao fim das férias foram surpreendidos pelo fogo que se alastrou rapidamente pelo alojamento. A estrutura, composta de contêineres e com apenas uma porta de saída, não possuía propriedades antichamas. Dez jogadores morreram – cinco deles tinham apenas 14 anos; quatro, 15; e o mais velho, 16.

Em Longe do Ninho: Uma Investigação do Incêndio Que Deu Fim ao Sonho de Dez Jovens Promessas do Flamengo de se Tornarem Ídolos no País do Futebol, a jornalista Daniela Arbex descreve, de forma objetiva e pungente, o drama dos pais, mães e familiares dos jovens atletas quando tomaram ciência do ocorrido. Em um primoroso trabalho de apuração, que inclui o acesso a laudos técnicos, trocas de mensagens, e-mails e entrevistas com as famílias dos jogadores mortos, a autora esmiúça a gênese da tragédia.

Mineira de Juiz de Fora, ­Daniela ­Arbex trabalhou durante 23 anos na ­Tribuna de Minas, onde foi repórter especial, e é ganhadora de diversos prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Esso de Reportagem, o ­Jabuti e o Prêmio Wladimir Herzog.

Longe do Ninho é o seu sexto livro-reportagem e foi, como os demais, publicado pela Intrínseca. Holocausto Brasileiro – Genocídio: 60 Mil Mortos no Maior Hospício do Brasil (2013) e Arrastados: Os Bastidores do Rompimento da Barragem de Brumadinho, o Maior Desastre Humanitário do Brasil (2019) são outros de seus trabalhos.

A tragédia do Flamengo estava fora de seus planos profissionais até o dia em que ela foi procurada pela mãe de um jogador do Ninho do Urubu. “De fato, jamais havia passado pela minha cabeça escrever um livro que abordasse futebol. Nos meus quase 30 anos de jornalismo, sempre me dediquei à defesa dos direitos de populações vulnerabilizadas. Nunca participei da cobertura de esportes”, diz ela, em entrevista por escrito a CartaCapital.

“Mas o fato é que fui atravessada pela história de Bernardo três anos depois da morte dele. A mãe do atleta, Leda, me escreveu no Instagram, após assistir a uma entrevista minha para o Fantástico, em 2022, por ocasião do lançamento de Arrastados”, prossegue a autora. “A partir daquele contato, o livro foi nascendo para mim, organicamente. Quando me dei conta, já estava profundamente envolvida com os Garotos do Ninho e, então, me restava investigar essa história.”

A jornalista passou os dois últimos anos debruçada sobre o caso e sobre a memória afetiva das famílias dos garotos. “Um dos momentos em que mais me emocionei foi durante a descoberta, no IML, de que todas as vítimas estavam com as placas de crescimento abertas, ou seja: estavam em pleno desenvolvimento”, relata.

Longe do Ninho. Daniela Arbex. Intrínseca (266 págs., 66,62 reais) – Compre na Amazon

Segundo a autora, quando os jogadores se reapresentaram, chegaram a pensar que iriam para o CT1, edificação com ­status de hotel que, durante dois anos, hospedou o time principal e deveria abrigar o futebol de base após o término das obras do novo Centro de Treinamento do Módulo Profissional, inaugurado em novembro de 2018. Eles foram, porém, mandados para os contêineres em forma de alojamento instalados em um espaço projetado como estacionamento.

A autora frisa que, no dia do incêndio, até 9h35 da manhã, a única manifestação pública do Flamengo tinha sido feita por meio da conta oficial do clube no X: “O Flamengo está de luto”, lia-se. Somente às 12h25 o então presidente do clube, Luiz Rodolfo Landim, falou com a imprensa na portaria do Centro de Treinamento. Desculpou-se pela demora em comentar o ocorrido e, ao final, retirou-se, sem dar chance para perguntas dos jornalistas.

“A investigação da cadeia de acontecimentos que antecedeu o dia 8 de fevereiro de 2019 traria à tona diversas irregularidades e uma certeza: a tragédia poderia ter sido evitada”, diz a autora.

Por exemplo, o alvará de funcionamento havia vencido em 2012 e não havia o certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros.

“É, no mínimo, contraditório que o Flamengo reservasse para os atletas profissionais um CT com 5,5 mil metros quadrados, enquanto para os meninos que representavam o futuro do clube um contêiner com espaço inferior a 200 metros quadrados”, descreve a autora. “Essa tragédia anunciada acende um alerta sobre a capacidade de os clubes oferecerem, de fato, estrutura adequada para os atletas em formação. São meninos que saem precocemente de casa, desenvolvem relações comerciais precoces, têm fragilizado o seu laço com a família e enfrentam sobrecarga física e emocional.”

Este mês, a tragédia completou cinco anos e segue sem uma conclusão na Justiça. •

Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.

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