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Foliões da tragédia

Enquanto João Henrique Caldas e Arthur Lira caem no samba, as vítimas do desastre da Braskem seguem à míngua

Foliões da tragédia
Foliões da tragédia
Na Sapucaí. A Prefeitura de Maceió patrocinou o desfile da Beija-Flor com um repasse de 8 milhões de reais. Os atingidos ainda lutam por reparações justas – Imagem: Redes sociais e Davysson Mendes/Prefeitura de Maceió
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Na Marquês de Sapucaí, no Rio, o descontraído desfile do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, e do presidente da Câmara, Arthur Lira, soou como escárnio para as vítimas da Braskem. O colapso de minas de sal-gema exploradas pela companhia provocou afundamento de solo em cinco bairros da capital alagoana, obrigando dezenas de milhares de famílias a abandonar às pressas suas casas, sob risco de desabamento. Boa parte delas ainda briga na Justiça para receber indenização justa da mineradora, que selou um acordo à parte com a prefeitura. Enquanto os desabrigados seguem desassistidos, Caldas dispôs-se a patrocinar o desfile da Beija-Flor de Nilópolis, que neste ano homenageou o engraxate Rás Gonguila, conhecido como o “imperador do carnaval de Maceió”. O contrato de 8 milhões de reais visava, segundo a administração municipal, aproveitar a vitrine do carnaval carioca para promover a cidade, um dos principais destinos turísticos do Nordeste, mas foi a calorosa recepção oferecida pelo bicheiro Anísio Abraão Davi, patrono da escola de samba, que chamou a atenção no sambódromo.

Passada a folia carnavalesca, Caldas e Lira devem enfrentar a ressaca da CPI da Braskem, a ser instalada ainda neste mês no Senado para investigar a maior tragédia socioambiental urbana da atualidade. Sugerida pelo senador Renan Calheiros, do MDB alagoano, e presidida por Omar Aziz, do PSD do Amazonas, a comissão foi criada em dezembro passado, ainda não tem um nome definido para relatoria, mas o próprio Calheiros tem interesse no cargo, replicando a parceria dele com Aziz na CPI da Pandemia. A expectativa é de que algumas vítimas sejam as primeiras convocadas a depor, assim como os executivos da mineradora que operou na extração de sal-gema por mais de 30 anos na capital alagoana, encerrando a exploração em 2019, após as minas instaladas, 35 no total, começarem a colapsar. Os primeiros sinais da tragédia surgiram em 2018, com um tremor capaz de abrir crateras nas ruas e rachar as paredes das edificações.

Uma ruidosa CPI aguarda o prefeito e o presidente da Câmara pós-carnaval

A Mina 18 foi a última a colapsar, em dezembro do ano passado. O risco agora paira sob as minas 20 e 21, que se fundiram e estão submersas na Lagoa Mundaú. Estudos preliminares indicam que as duas deram origem a uma caverna gigante, com 121 metros de altura e 96 metros de largura. Um estudo de novembro mostra que a cratera está avançando. A Defesa Civil afirma que essa movimentação era esperada e diz que todas as minas continuam sendo monitoradas constantemente. Em nota, a Braskem informou não haver “registro atípico de sísmica ou de movimento relevante detectado pelos equipamentos da rede de monitoramento na área das cavidades 20/21”.

Calheiros defende a revisão dos acordos de indenização celebrados pela mineradora. A CPI teria a missão de fazer justiça às vítimas. “A expectativa é de um trabalho técnico imparcial e fiel ao fato determinado no requerimento de criação da CPI: o desastre ambiental da Braskem em Maceió. Ele não transborda para nenhum outro tema, até porque o escopo está muito claramente descrito no pedido inicial e tem um vetor nitidamente humanitário”, diz o emedebista. “As vítimas serão a prioridade da Comissão, bem como a revisão dos contratos ilegais entre a prefeitura e a Braskem.”

O senador cobra uma auditoria para investigar quanto e a quem a Braskem deve, incluindo as vítimas, o estado de Alagoas e os municípios afetados direta e indiretamente. Na segunda-feira 12, ele aproveitou a presença de Lira e Caldas no desfile da Beija-Flor para fustigar os adversários: “As vítimas da Braskem estão abandonadas, mas os foliões que coreografaram acordos ilegais deliram na avenida, inebriados pelo dinheiro público. Preço tem: 8 milhões de reais da prefeitura de Maceió torrados no Rio. É desumano e cruel. Merece nota zero em todos os quesitos”, disparou Calheiros. Também nas redes sociais, Lira definiu sua experiência no sambódromo como um “momento histórico para a nossa capital e para o estado de Alagoas”, sem fazer qualquer referência aos bairros fantasmas de Maceió.

Futuro. Aziz e Calheiros podem repetir a dobradinha vista na CPI da Pandemia. Jackson Douglas (de óculos) teme ser empurrado para um bairro afastado – Imagem: Acervo pessoal/Jackson Douglas e Geraldo Magela/Ag. Câmara

Em janeiro, a Agência Nacional de Mineração apresentou um relatório com exigências para a Braskem cumprir no prazo de 60 dias, incluindo um parecer detalhado sobre a Mina 18, causas e consequências do colapso. A ANM cobra ainda um estudo sobre a possível ocorrência de novos eventos de movimentação do terreno ou abatimentos e colapsos em outras cavidades. “Todos os dias vemos um fato novo para justificar a existência da CPI. São 150 mil vidas afetadas, 6 mil pequenos negócios fechados, famílias destruídas, sonhos enterrados, desemprego e, provavelmente, a maior migração urbana do mundo em tempos de paz”, enumera Calheiros.

As pessoas atingidas relatam, ainda, um comprometimento da saúde mental. Obrigada a fechar seu estúdio de pilates devido ao desastre, a fisioterapeuta Andréa Alpoim foi diagnosticada com depressão e transtorno de ansiedade generalizada. Nem a casa que morava nem o estúdio, ambos no bairro Pinheiros, foram indenizados pela Braskem, sob o argumento de que não faziam parte da área de risco. “A grande maioria dos meus pacientes morava na região que foi inserida no mapa e todos saíram do bairro com o passar do tempo. Fiquei sem clientes da noite para o dia e comecei a acumular dívidas. Não tive outra alternativa a não ser fechar as portas, vender o maquinário, tentar pagar o máximo de dívida”, diz a fisioterapeuta, acrescentando que seu pai também adoeceu em decorrência da tragédia, teve um Acidente Vascular Cerebral que deixou várias sequelas.

A especulação imobiliária também atormenta as vítimas da Braskem. Além de ter perdido suas casas, as pessoas foram levadas a procurar bairros menos valorizados, porque as somas que receberam nas indenizações não são suficientes para comprar um imóvel compatível com o que tinham. Muitos tiverem de partir para o aluguel e, mesmo assim, caíram de padrão. “Antes, você pagava num apartamento de 110 metros em torno de 2 mil reais de aluguel. Hoje, não é menos de 3,5 mil”, afirma Alpoim. “A Braskem nunca pagou a indenização justa aos moradores. Ela usou de expertise com as tratativas, aproveitando do momento de pânico da população. A maioria, 90% dos afetados, retroagiu, indo para bairros menos valorizados”, completa Jackson Douglas, morador do bairro de Bebedouro, evacuado às pressas.

Calheiros defende a revisão de todos os acordos de indenização celebrados pela mineradora

A indenização paga pela Braskem é um dos maiores gargalos da tragédia. Além da CPI, a Defensoria Pública Estadual e a OAB de Alagoas estão empenhadas na revisão dos valores pagos. Na quinta-feira 15, após o fechamento desta edição de CartaCapital, está prevista uma audiência na Justiça de Roterdã sobre o desastre da Braskem, já que a mineradora tem vínculos empresariais na Holanda. Desde 2022, o caso é analisado no país europeu, paralelamente aos processos no Brasil. A previsão é de uma análise do mérito da ação no segundo semestre deste ano. “Vamos lá colaborar com a Corte holandesa para tentar buscar uma indenização justa. A gente quer que a Justiça brasileira também dê uma resposta satisfatória. Seria muito feio para o Brasil se essa justiça vier lá do outro lado do Atlântico”, ressalta o defensor público de Alagoas, Ricardo Melro, que viajou à Holanda.

Situação ainda mais difícil vivem as pessoas que moram nas comunidades que margeiam os cinco bairros fantasmas. Os moradores dessas comunidades ilhadas nem sequer têm direito a indenização, porque estão fora do mapa de riscos. Com a desocupação dos bairros vizinhos, os serviços que antes operavam lá deixaram de existir. Escolas, unidades de saúde, supermercados, farmácias e outros serviços foram desativados, comprometendo o cotidiano dos moradores isolados. “São pessoas que vivem da economia local, são do comércio informal e não têm acesso aos serviços básicos, sejam públicos ou privados”, destaca a advogada Marluce Furtado, integrante da Comissão Especial de Acompanhamento do Caso Pinheiro da OAB de Alagoas. “Essas pessoas também precisam ser ouvidas.” •

Publicado na edição n° 1298 de CartaCapital, em 21 de fevereiro de 2024.

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