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Não deixa de ser histórica a análise, pela Corte de Haia, dos crimes de Israel em Gaza

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Apesar de simbólica, a apreciação da denúncia de genocídio contra os palestinos abre uma fissura na proteção do Ocidente a Israel – Imagem: Arquivo/Tribunal Penal Internacional
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A Corte Internacional de Justiça iniciou audiência histórica para determinar se os ataques de Israel na Faixa de Gaza podem ser qualificados como crimes de genocídio. A África do Sul alega que Israel violou a Convenção sobre Genocídio de 1948, pois suas ações, conectadas às declarações públicas de autoridades militares e políticas, demonstram a “intenção de provocar a destruição de uma parte substancial” da população palestina em Gaza. Israel, por sua vez, alega exercer seu direito fundamental de autodefesa de acordo com a lei internacional.

Logo após os terríveis massacres cometidos pelo Hamas, além de impor bloqueio total à Faixa de Gaza, cortando eletricidade, água, combustível e alimentos para uma população de 2,2 milhões de habitantes (metade crianças), Israel iniciou um intenso bombardeio que dura mais de cem dias. Até o momento, foram contabilizadas mais de 24 mil mortes (10 mil crianças), com deslocamento forçado de 85% da população em situação precária de fome severa e risco crescente de morte em massa por doenças.

O debate sobre as alegações de que Israel comete genocídio em Gaza tem sido intenso em todo o mundo, e os discursos são, na maioria das vezes, alimentados pelas mesmas divisões políticas e ideológicas em torno da chamada Questão Palestina. O que distingue o genocídio de outros crimes de guerra é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal”. Em outras palavras, a intenção de infligir baixas civis em toda ou parte de uma população não é suficiente, essa população deve ser visada por pertencer ao grupo em questão.

O termo genocídio é uma construção do direito internacional que teve os EUA e aliados europeus como patrocinadores. Eles tiveram o máximo cuidado de garantir que o conceito daria conta do Holocausto, mas não seria aplicável às violências do colonialismo, nem permitiria questionar alguns mitos que legitimam a construção de nações, como é o caso da “marcha para o Oeste selvagem” que exterminou os indígenas norte-americanos. Na verdade, o genocídio, tal como definido juridicamente, permite uma proteção aos Estados de praticarem uma grande variedade de atos violentos, desde a fome por meio de bloqueios e sanções até o bombardeio aéreo e a guerra de contrainsurgência

O fato de o governo israelense achar importante defender-se da acusação de genocídio demonstra o impacto da audiência

As estatísticas dos assassinatos em massa em situação de conflito bélico, após a Convenção Sobre Genocídio em 1948, ilustram bem essa proteção. Durante a Guerra da Coreia, de 1950 a 1953, a proporção de mortes de combatentes e civis foi de 1 para 5. Uma década depois, no Vietnã, foi de 1 para 13. Dados do Unicef de 1989 sugerem que 90% de todas as vítimas de guerra desde a Segunda Guerra Mundial foram mulheres e crianças. Como se sabe, nenhuma dessas centenas de casos foi levada a julgamento ou não foi aceito como passível de ser julgado como genocídio.

No caso de Israel, acrescente-se o fato de que sua impunidade está inserida no próprio sistema, segundo o especialista israelense em genocídio Raz Segal. O fato de que o Estado judeu cometeria crimes de guerra, quanto mais genocídio, era algo impensável. Soma-se a isso o fato de que os EUA sempre conseguiram manter Israel isento de qualquer tipo de responsabilidade perante o direito internacional. Talvez por isso, as autoridades israelenses se consideram tão intocáveis e, durante esses cem dias, não tenham demonstrado nenhum constrangimento em manifestar, em seus discursos, a intenção genocida de suas ações. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu chegou a pedir aos israelenses que lembrassem do relato do Antigo Testamento sobre a carnificina de Amaleque: “Não poupem ninguém, mas matem igualmente homens, mulheres e crianças”.

Diante da acusação atual, quaisquer que sejam as decisões finais do tribunal, o simples fato de Israel avaliar ser importante defender-se na Corte revela o caráter simbólico que reveste esse julgamento, que pode tornar-se, de alguma forma, uma espécie de subversão do sistema jurídico-político construído após a Segunda Guerra Mundial. Além disso, o fato de ser a África do Sul a apresentar a acusação traz à memória a história desse ­país, que nos faz relembrar o histórico colonial, bem como a luta contra o apartheid.

A petição da África do Sul e o julgamento de Israel mostram que não se pode confiar no Conselho de Segurança ou na Assembleia-Geral da ONU, muito menos nos EUA e seus aliados, que, além de não interromper os massacres em Gaza, se transformaram em verdadeiros cúmplices no envio de armas e munições a Israel. É preciso reconhecer que a acusação a Israel vai além dos tribunais. Poucas vezes se presenciou a dimensão das mobilizações populares no mundo inteiro pelo cessar-fogo, com críticas às ações militares de Israel, mostrando a sintonia da sociedade civil com o que ocorre na Corte, inclusive nos países cujos governos apoiam Israel, como os EUA e a Inglaterra. O que demonstra a falta de legitimidade democrática nas decisões desses governos.

A Alemanha manifestou-se criticamente à petição da África do Sul e disse que pretende intervir na questão. O governo da Namíbia prontamente rebateu o apoio da Alemanha, ao lembrar a responsabilidade alemã pelo “primeiro genocídio do século XX”, pelo qual “ainda não se redimiu totalmente”. Essas manifestações dos governos desenham o quadro do sistema de alianças no mundo e agregam mais um fator nos inúmeros questionamentos que os países do Sul Global têm feito à hegemonia ocidental.

Por fim, cabe destacar a manifestação de especialistas em genocídio e Holocausto de Israel e de outros lugares do mundo. Preocupados com os discursos de líderes israelenses, o jornal Haaretz registra: “A história judaica e o estudo do Holocausto ensinaram-nos que o incitamento e a desumanização podem degenerar em crimes e até genocídio”.

Nesse sentido, só podemos ver com bons olhos a decisão do presidente Lula em apoiar a petição da África do Sul, deixando claro que um governo democrático que se preze tem, por dever moral, de repudiar veementemente toda e qualquer forma de crimes contra a humanidade e estar ao lado dos povos vitimados pelas mais variadas formas de massacres. •


*Professor de Relações Internacionais da PUC-SP.

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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