Justiça
Democracia convalescente
O STF conseguiu conter o avanço da violência extremista, mas a solução do problema está nas mãos da sociedade civil


Vivenciamos, com o bolsonarismo, uma severa fragilização dos direitos fundamentais, uma degradação institucional sistêmica, um esvaziamento dos espaços e dos sentidos da democracia, e até mesmo da própria relação de pertencimento à sociedade. Medo, ódio, ressentimento, decepção, raiva e angústia foram capturados através de narrativas autoritárias e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância.
O bolsonarismo desenhou-se através de inéditas e desafiadoras formas e discursos que, não por acaso, culminaram com o ataque à democracia brasileira de 8 de janeiro de 2023. Os poderes constituídos da República foram, sem precedentes na nossa história, desafiados por atos de violência que visaram, para além de mero inconformismo com o processo eleitoral que elegeu o presidente Lula, implementar um golpe de Estado e abolir o nosso Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, o primeiro ano do governo Lula caracteriza-se, para além de diversas conquistas sociais e de estancamento de retrocessos, pelo compromisso irrenunciável com a defesa da nossa democracia e dos poderes constituídos, bem como pela retomada do pacto de civilidade e da institucionalidade. Isto é, o balanço do primeiro ano do governo Lula sob a ótica da Justiça, ora realizado, requer que consignemos, como regra geral, que as instâncias da administração federal, o sistema de Justiça, o Ministério Público e a Polícia Federal atuaram adequadamente.
A democracia é, indubitavelmente, um dos maiores valores das sociedades políticas contemporâneas. É ela que assegura a todos, em iguais condições, a participação no processo público desencadeador da eleição daqueles que, através da provisória e instrumental investidura em funções públicas, cumprirão determinados deveres. A premente necessidade de preservação da democracia reclamou inéditas soluções públicas contra as aventuras autoritárias.
O presidente Lula agiu adequadamente ao, de forma oportuna, intervir no Distrito Federal. Como regra geral, a conduta do governo federal foi correta, ressalvando o arranjo de intervenção isolada na Secretaria de Segurança. Uma específica intervenção em órgão subordinado ao governador, em termos práticos, cria uma espécie de segundo governador concomitante. O interventor, assumindo a chefia do específico órgão objeto de intervenção, responde ao presidente da República e não ao governador, que preserva as demais atribuições.
É na vida social e política que podemos derrotar o autoritarismo
De todo modo, havia razões para a intervenção. O governo do Distrito Federal não respondeu adequadamente aos ataques ao patrimônio público, bem como ao bom funcionamento da capital federal. A garantia do livre exercício dos poderes constituídos e o grave comprometimento da ordem pública fundamentaram, legitimamente, a intervenção, que deveria ter sido implementada no governo distrital como um todo.
Na sequência, coube ao sistema de Justiça realizar a defesa da democracia, agindo, como regra geral, de forma muito positiva. Através do devido processo legal, assegurando os direitos à ampla defesa e ao contraditório, diversas pessoas foram condenadas pelo Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, a Suprema Corte está promovendo avanços civilizatórios quanto aos mecanismos públicos de defesa do sistema de direitos em face dos ataques autoritários. O STF merece, sem favor algum, o reconhecimento do seu invulgar papel na defesa da democracia brasileira. A responsabilização criminal está, no geral, ocorrendo de forma adequada. Todas as etapas estão sendo rigorosamente cumpridas e há farta comprovação da materialidade das condutas e da culpabilidade.
Não cabe questionar a competência do Supremo para apurar e julgar referidos crimes. A sede do STF foi invadida, ao passo que seu Regimento Interno dispõe ser de sua atribuição apurar e processar crimes cometidos no seu interior, atraindo os crimes cometidos nas sedes do Executivo e do Legislativo.
Por outro lado, não podemos cair na ilusão de que inexistiram equívocos. Houve, exemplificativamente, um ou outro erro no uso abusivo da prisão preventiva, o que não caracteriza medida de exceção. Não estamos diante de uma patologia no sistema, mas de disfunções no funcionamento, o que é normal. O sistema de Justiça é composto de seres humanos, que naturalmente erram. Esses erros foram, no geral, corrigidos.
Não podemos admitir a antecipação da punição, deturpando-se a prisão preventiva como tática de responsabilização penal imediata. Trata-se de ato de barbárie incompatível com o sistema penal constitucional. Não se pode retribuir os ataques criminosos às instituições da República por meio da banalização da prisão preventiva.
Ademais, o Supremo deveria ter afastado o bis in idem entre os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado. As provas são abundantes no sentido de demonstrar a intenção de depor um governo legitimamente constituído e abolir o Estado Democrático de Direito. A circunstância de não terem consumado seu intento não atenua responsabilidades. Referidos crimes caracterizam-se, imediatamente, pela tentativa. Não podemos admitir, porém, o excesso punitivo.
Nesses termos, o balanço que ora realizamos é majoritariamente positivo. Nossas instituições estão se mostrando capazes de enfrentar o autoritarismo. No entanto, os mecanismos jurídicos de defesa da democracia podem, quando muito, conter o avanço da extrema-direita, mas não resolver o problema sociopolítico que é o extremismo político violento. Esse tipo de problema só é passível de solução na vida social e política, através da articulação da sociedade para evitar práticas dessa natureza.
O que o sistema de Justiça e os mecanismos de defesa da democracia conseguem é uma mera contenção do avanço da violência extremista. A solução do problema está nas mãos da sociedade, nas mãos de todos nós, integrantes da sociedade civil. A solução está nas mãos da cidadania. É na vida social e política que a gente vai conseguir resolvê-lo. •
Pedro Serrano: Advogado e professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo e Golpes na América Latina (Alameda Editorial).
Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Democracia convalescente’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.