Economia
“Fugir para onde?”
O Brasil já é um paraíso fiscal para os super-ricos, observa Isac Falcão, presidente do Sindifisco Nacional


“Ser rico não é pecado”, disse o empresário João Camargo em um lacrimoso artigo publicado na Folha de S.Paulo em setembro, no qual praguejava contra a intenção do governo Lula de taxar os lucros de fundos exclusivos e das empresas offshores, constituídas por brasileiros no exterior. Chairman-executivo da CNN Brasil, sócio da 89 Investimentos e fundador do grupo Esfera Brasil, think tank para congregar empresários, ele advertiu que a tentativa de taxar a riqueza dos endinheirados levaria a uma inevitável fuga de capitais: “Num mundo globalizado, o rico tem uma mobilidade financeira enorme, conseguindo alocar seu dinheiro em lugares mais atrativos de forma quase instantânea”.
Não consta que Camargo esteja de malas prontas para deixar o Brasil mesmo após os senadores aprovarem, no fim de novembro, o Projeto de Lei 4.173/2023, que muda a forma de tributação dos fundos exclusivos e das offshores. Talvez o empresário tenha descoberto que já vivia num paraíso fiscal e não sabia – ou fingia não saber. “Os super-ricos brasileiros não têm muitos lugares para onde ir, até porque a tributação sobre o capital e o patrimônio é ínfima por aqui”, observa Isac Falcão, presidente do Sindifisco Nacional.
Na avaliação do dirigente, ambas as iniciativas contribuem para a justiça fiscal. Falcão acrescenta, porém, que o Brasil tem muito a avançar na tributação sobre a renda e o patrimônio, algo indispensável para aliviar os impostos que incidem sobre o consumo e dilapidam a renda dos mais pobres. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital, dias antes da votação do PL no Senado.
Mão pesada no IVA
Uma das vantagens da unificação dos tributos sobre o consumo é a transparência. O brasileiro saberá exatamente o quanto paga de impostos em cada produto, isso ficará exposto na nota fiscal. Precisamos, porém, avançar para a segunda fase da reforma, com uma taxação maior sobre a renda e o patrimônio. Nosso sistema é fortemente dependente da tributação sobre o consumo, e isso não foi alterado. As primeiras simulações do IVA apontavam para uma alíquota de referência próxima de 29%, uma das maiores do mundo (entre os países da OCDE, a média é de 19,2%). Talvez esse porcentual se altere um pouco, por conta das excepcionalidades para alguns setores aprovadas no Congresso, mas o desequilíbrio é evidente.
Robin Hood às avessas
Em um sistema tributário justo, cada um deve pagar de acordo com a sua capacidade econômica. Quem não ganha o necessário para a própria subsistência nem sequer deveria contribuir. Quem é remediado paga menos, quem é rico paga mais. Mas a tributação sobre o consumo inverte essa lógica. Os pobres gastam praticamente tudo que recebem em consumo, por isso uma alíquota de referência do IVA elevada tende a prejudicá-los. Se o indivíduo ganha 2 mil reais e todo o seu salário é usado para custear despesas com alimentação, saúde, educação e demais contas da família, ele já pagou quase 30% de sua renda em impostos. Já um empresário que ganha 1 milhão de reais consegue poupar a maior parte de seus rendimentos. Se, desse montante, ele gastar uns 100 mil reais por mês, pagará em tributos sobre o consumo o equivalente a 3% de sua renda, dez vezes menos. O Brasil não chegou ao topo dos rankings de desigualdades sociais à toa.
“A taxação dos lucros de offshores e fundos exclusivos contribui para a justiça fiscal”
Âncora do desenvolvimento
É fundamental que toda renda seja taxada. Por aqui, tributa-se muito mais a renda do trabalho do que a do capital. O Brasil é um dos únicos países do mundo que isentaram a cobrança sobre lucros e dividendos. Das nações da OCDE, somente a Estônia fez o mesmo. Isso é um absurdo completo. Os sócios e acionistas de empresas não pagam impostos sobre os ganhos de seus negócios, enquanto seus trabalhadores têm Imposto de Renda retido na fonte. Por muitos anos, os super-ricos brasileiros pagaram muito menos impostos do que seus pares em países desenvolvidos, ou mesmo naqueles em desenvolvimento. Para compensar, o País passou a taxar ainda mais o consumo. É uma âncora para o desenvolvimento nacional, pois isso afeta o poder de compra das famílias. Hoje, muitas indústrias se veem forçadas a reduzir o ritmo de produção porque não têm a quem vender seus produtos.
A desigualdade sabota o País
Se os super-ricos pagassem um pouco mais, os mais pobres não precisariam deixar 30% de sua renda em impostos. É preciso haver um equilíbrio. A tributação sobre o consumo significa retirar dinheiro da economia. Sem essa carga, a maioria dos brasileiros poderia consumir mais, o que seria ótimo para o setor produtivo. Países de elevado desenvolvimento, como os EUA, Japão e Alemanha, entre tantos outros, tributaram os super-ricos. Eles não teriam tido tanto êxito econômico se tivessem um sistema tributário que gera tanta desigualdade como o do Brasil.
O risco da fuga de capitais
O argumento de que não se deve cobrar de quem tem condições de escapar da tributação é extremamente ardiloso. Qual é a lógica? Vou taxar apenas quem não consegue fugir do País? Então devo cobrar do assalariado, que tem o imposto descontado na folha, e abrir mão da contribuição de quem ameaça arrumar as malas e ir para Miami? É uma falácia, pois podemos melhorar a legislação e a máquina arrecadatória para alcançar esses também. Os super-ricos brasileiros não têm muitos lugares para onde ir, até porque a tributação sobre o capital e o patrimônio é ínfima por aqui. Não se está pleiteando um confisco ou cobrança injusta, é um simples alinhamento da tributação do Brasil com a experiência internacional, com as melhores práticas adotadas no mundo para viabilizar o desenvolvimento econômico e social.
Quem vai largar o osso?
Vamos imaginar que o Brasil crie um imposto sobre grandes fortunas e passe a taxar 1% de quem ganha mais de 10 milhões de reais. Será que todo mundo iria embora daqui? Para onde? Imagine o dono de um shopping center. Vai vender o negócio? Neste caso, quem comprar vai pagar o 1%. Se ele se mudar para o exterior, mas não vender o shopping, vai continuar pagando imposto sobre o patrimônio apurado no Brasil. É a mesma lógica de quem tem um apartamento em Belo Horizonte e resolve morar em Portugal. Enquanto for proprietário do imóvel, vai pagar IPTU por aqui.
O papel do Estado
No caso específico das offshores, é preciso observar que os super-ricos já fugiram da tributação no Brasil. O que se pretende é trazer de volta parte desse capital remetido artificialmente para paraísos fiscais. Essas empresas costumam fazer investimentos no Brasil, além de comprar imóveis, carros e outros bens para usufruto de seus controladores por aqui. Não apenas é possível, como o Estado tem o dever de cobrar dessas pessoas uma contribuição proporcional às suas receitas. •
Publicado na edição n° 1289 de CartaCapital, em 13 de dezembro de 2023.
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