Mundo
Óleo na fogueira
O pessimismo marca a abertura da COP28 em Dubai, a prever debates para promover a indústria de petróleo


A Terra ferve, mas os líderes mundiais, com os olhos embotados por guerras e disputas econômicas, parecem ignorar os eventos climáticos extremos, cada vez mais frequentes e intensos. Desde 1850, marco da Revolução Industrial, a intervenção humana provocou uma elevação da temperatura média global de 1,4ºC, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o IPCC. Há oito anos, o Acordo de Paris estipulou a meta de conter o aquecimento do planeta a 1,5ºC até o fim deste século, iniciativa que os cientistas consideram indispensável para evitar o colapso climático. Para tanto, as emissões de gases do efeito estufa deveriam ser reduzidas em 50% até 2030, mas, na prática, os níveis de dióxido de carbono (CO² ) lançados na atmosfera só aumentam. São mais de 60 bilhões de toneladas anuais. Neste ano, a crise não fez distinção entre estações, altitudes ou latitudes. Causou em diversos países desastres que redundaram em mortes, destruição e perdas econômicas, cabendo os maiores castigos, como sempre, à população mais pobre.
Apesar de a locomotiva da humanidade dirigir-se em alta velocidade para o abismo, a movimentação dos donos do mundo às vésperas de mais uma Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP28, beira o escárnio. A desconfiança inicial com o país anfitrião, os Emirados Árabes Unidos, um dos maiores produtores mundiais de petróleo, deu lugar ao pessimismo com a confirmação de que o evento, iniciado na quinta-feira 30, tem na programação uma série de debates para promover a indústria de óleo e gás. Nada mais distante do que pensam os cientistas e ambientalistas, para quem a substituição dos combustíveis fósseis por fontes de energia renováveis é imperativa. “Com um país petroleiro como anfitrião e uma agenda de debates que parece legitimar o uso de combustíveis fósseis, podemos dizer que a COP começa mais descolada da realidade do que nunca”, lamenta o ex-deputado Liszt Vieira, coordenador do Fórum Global da Rio-92.
No comando da Conferência do Clima, Sultan al-Jaber também preside a companhia estatal petrolífera dos Emirados Árabes
A polêmica atende pelo nome do presidente da COP28, o executivo Sultan Ahmed al-Jaber, que também é presidente da Adnoc, a companhia estatal de petróleo dos Emirados Árabes. Simpático à ideia de “exploração ecológica” dos combustíveis fósseis, Al-Jaber, segundo documentos obtidos pelo Centre for Climate Reporting e publicados pela BBC, pretende usar a Conferência para realizar reuniões bilaterais com 27 países, entre eles o Brasil, para tratar da exploração de petróleo e gás. A revelação a poucos dias do início do evento motivou a Anistia Internacional a pedir a renúncia de Al-Jaber: “A COP28 foi totalmente capturada pelo lobby dos combustíveis fósseis, com seus interesses particulares que colocam em risco toda a humanidade. É o clássico caso da raposa cuidando do galinheiro”, diz a norte-americana Ann Harrison, conselheira climática da entidade.
A ação dos gigantes do petróleo em causa própria não surpreende Vieira. “As Conferências do Clima têm permitido uma absurda ingerência da indústria de combustíveis fósseis. A COP27 credenciou 636 lobistas nas delegações oficiais. Um ano antes, a COP26 credenciou 503 lobistas. Na COP28, pela primeira vez, o cartel dos países petroleiros terá um pavilhão no evento”, diz. Coordenador do Fórum Brasileiro de ONGs de Meio Ambiente (FBOMS), Rubens Born, presente em Dubai, aponta outro perigo: “Ao país anfitrião cabe o privilégio de, em caso de impasse, sugerir um texto alternativo para um acordo. Há o risco de termos um texto que fala no uso de tecnologias mais limpas de produção de combustíveis fósseis”.
Na contramão do pessimismo geral, o Brasil tem a pretensão de fazer bonito na COP. Liderada por Lula e integrada pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Marina Silva (Meio Ambiente), entre outros, a delegação brasileira vai mostrar ao mundo os números que apontam a redução de 22,3% no desmatamento da Amazônia em um ano e projeções ainda melhores para 2024. O governo também pretende apresentar suas propostas de transição energética e ecológica e de regulação do mercado de carbono, mas nem tudo serão flores. A realidade interna da política brasileira está distante dos compromissos assumidos globalmente por Lula.
Prova disso foi a aprovação, nesta semana pelo Senado, do “PL do Veneno”, que aumenta a farra dos agrotóxicos no País. Outra novidade que pode constranger o governo brasileiro na COP28 é a possível derrubada, pela Câmara, do veto de Lula ao Marco Temporal. “Em certa medida, esses retrocessos desmontam o discurso do Brasil. O governo apresentará números de desmatamento mais baixos, mas terá de explicar por que as populações indígenas correm risco. Se temos, por um lado, um governo que quer construir uma agenda positiva, por outro, temos um Congresso doidinho para acabar com a festa”, resume Márcio Astrini, coordenador-executivo do Observatório do Clima, também presente em Dubai.
Além de ter de explicar outros reveses, como, por exemplo, o fracasso até aqui em reduzir o desmatamento no Cerrado, o Brasil precisa mudar sua postura se deseja de fato assumir o papel de liderança ambiental mundial, avalia Astrini. “Uma coisa é o governo dizer na COP que fez a lição de casa em relação à Amazônia. Mas, se deseja liderar a agenda climática, é preciso ter um posicionamento duro e exemplar sobre o principal problema da questão climática hoje, que são os combustíveis fósseis.” Para o ambientalista, o Brasil peca nesse aspecto: “O governo deveria dizer que não vai mais abrir novos campos de exploração em áreas sensíveis como a Amazônia, Abrolhos e outras regiões. E apresentar um cronograma para a substituição dos combustíveis fósseis. Um líder, para exigir algo de seus pares, também tem de fazer sua parte”, diz.
Born concorda com a avaliação. “O Brasil vai falar de florestas, o que é importante, mas tem de esclarecer também se vai interromper a exploração do pré-sal, se pretende poupar a Margem Equatorial junto à costa do Amapá”, diz. Para o coordenador do FBOMS, precisa haver coerência entre o discurso e a prática. O mesmo vale para o programa de transição ecológica: “Esse plano pode dar maior visibilidade internacional ao Brasil, mas precisa ser consistente e começar a ser implementado. A Lei Orçamentária de 2024 tem de incluir recursos para essa finalidade e considerar os instrumentos adequados para que ele saia do papel”. •
Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.