Editorial
A Argentina perdida
Já foi um país de cofres abarrotados por lingotes de ouro maciço. Hoje está à matroca
Já se foi o tempo de Evita e Jorge Luis Borges. Evita dispensa apresentações, Borges também. Ambos, cada qual a seu modo, deslumbraram o mundo, e não é por acaso que Evita foi mulher de Juan Domingo Perón, ditador argentino, para variar, e um marco na história do país. Neste momento da vitória de Javier Milei para ocupar a Casa Rosada já cenário de eventos grandiosos, percebo que a decadência foi muito além de dramática, pois impõe-se a tragédia.
Evita, mulher de Perón, ícone do passado – Imagem: Arquivo Nacional
As figuras portenhas dignas de vasta repercussão mundial são inúmeras. Só para citar um, Julio Cortázar, escritor revolucionário, sem esquecer Ernesto Sabato, que também enriqueceu a veia literária latino-americana, naquele tempo muito respeitada mundo afora, para tornar-se uma atração planetária. Astor Piazzolla elevou o tango a dimensões nunca imaginadas com seu bandoneon a ecoar por todo canto e ganhando espaço, inclusive no Teatro Colón, onde todo ano se exibiam os melhores cantores do mundo.
Jorge Luis Borges, o pensador que influenciou gerações em todo o mundo e ainda deslumbra por sua visão mágica das coisas da vida – Imagem: Ulf Andersen/Aurimages/AFP
Ardidas línguas nativas murmuravam sinistramente que o argentino era um italiano que falava espanhol e acreditava ser inglês. Era um revide à afirmação comum em bocas portenhas de que o povo brasileiro era “macaquito”, e a contenda alastrava-se até os estádios e, em primeiro lugar, neste espaço sagrado, adentravam os imortais Pelé e Maradona. Como repórter, aos 28 anos, estive na Argentina na cobertura da longa visita sul-americana de Giovanni Gronchi, presidente da República italiana.
Che Guevara, o médico que se tornou missionário da Revolução – Imagem: René Burri
Ele viria também ao Brasil, para uma visita que não durou um dia, para um encontro com Jânio Quadros, então presidente, no Galeão. Eram momentos tempestuosos, pois a Revolução Cubana, conduzida por Fidel Castro e Che Guevara, descia de Sierra Maestra para tomar Havana e obrigar Fulgencio Batista à fuga precipitada. O evento abalava o planeta e levava o presidente John Kennedy a viver o desastre da tentativa frustrada de invasão da Baía dos Porcos. A URSS, obviamente, apoiava Fidel e o Caribe tornou-se uma área de fricção mundial, e assim permaneceu por muito tempo.
Pela Casa Rosada já passaram homens honrados e ditadores – Imagem: iStockphoto
Lembro de uma Buenos Aires profundamente marcada pela arquitetura europeia, executada com bom gosto, em uma cidade moderna e cosmopolita. Não deixei de visitar o bairro da Boca, onde palpitava a alma genovesa, muito bem representada pelo pesto, o típico molho da cidade da lanterna, e uma torta crocante de farinha de grão-de-bico chamada fainá, saída de fornos conectados, provavelmente, com o fogo eterno do inferno. Na ocasião, Gronchi visitou também uma região à sombra dos Andes, para respirar, em Mendoza, um ar vagamente piemontês.
Astor Piazzolla levou o tango até seu máximo esplendor – Imagem: P. Ullman/Roger-Viollet/AFP
Não se esgotou aí a cultura argentina, pelo contrário, cresceu até a criação de um cinema de excelente qualidade, graças ao talento de atores e diretores de grande inspiração, a exemplo de Ricardo Darín, e de dois filmes extraordinários intitulados O Segredo dos Seus Olhos (2009) e Um Conto Chinês (2011), o primeiro premiado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010. O imperialismo americano cuidou de gerar uma feroz ditadura em um país que tanto prometia e já em boa parte realizava. A repressão foi tão feroz quanto a chilena, ainda que Salvador Allende fosse chileno, e significasse um lampejo de raro brilho numa terra tão inóspita, comprimida entre o Pacífico e os Andes. Em seguida à ditadura, a Argentina ensaiou uma tentativa de retorno à democracia. Uma série interminável de erros e tergiversações atirou-a no desastre econômico e o resultado eleitoral já se dá neste momento em oposição à primeira imagem de um país rico e de cofres abarrotados de ouro maciço. Imagem remota, é verdade, mas deprimente na comparação com os dias de hoje, e nisso avulta a decadência cultural tão eficazmente representada pelo recém-eleito Milei. •
Ninguém na América do Sul foi tão agredido e vitimado pelo imperialismo de Tio Sam. O presidente Salvador Allende matou-se antes de ser preso em seguida ao bombardeio do palácio de seu governo. Abaixo, Cortázar, um dos grandes da literatura latino-americana – Imagem: Prensa Latina/AFP, Ulf Andersen/Aurimages/AFP e Arquivo/AP
Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A Argentina perdida’
Leia essa matéria gratuitamente
Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!
Um minuto, por favor…
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.
Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.
Assine a edição semanal da revista;
Ou contribua, com o quanto puder.