Mundo
Déjà vu
Teriam os argentinos se esquecido da experiência de dolarização dos anos Menem-Cavallo?


Às vésperas da eleição presidencial vencida por Javier Milei, o jornal Pagina 12 publicou um artigo de Carlos Heller. O economista argentino relembra os acontecimentos de 10 de julho de 1980. “O então ministro da Economia da ditadura civil-militar, José Alfredo Martínez de Hoz, anunciou em rede nacional de televisão uma nova etapa do plano econômico implementado desde abril de 1976. Lá sustentou: ‘O governo das Forças Armadas não apenas extirpou a subversão terrorista, mas oxigenou moralmente nossa vida econômica’. Além disso, resumiu os eixos de sua gestão em 12 pontos. A maioria deles continha a palavra liberdade”, anotou.
Heller prossegue: “A liberdade de preços, a eliminação do controle de preços, liberdade de operações cambiais com a eliminação dos controles cambiais, liberdade de comércio exterior com a eliminação dos monopólios de exportação, por exemplo, de grãos e carnes, liberdade de exportação através da eliminação de proibições e impostos de exportação, liberdade de importação, através da eliminação de proibições, contingentes, licenças e da aplicação de um programa de redução pautal durante um período de cinco anos, a liberdade das taxas de juro e a implementação da reforma financeira que abre o setor à concorrência interna e externa”.
Milei invoca novamente as bênçãos da liberdade garantida pelo mercado. Entre suas crenças figuram a adoção do dólar como moeda e a extinção do Banco Central. Declarações de amor aos cânones da liberdade e às virtudes da dolarização pautaram as políticas econômicas argentinas em outros episódios do passado. Nos idos de 1991, a Ley de Convertibilidad de Domingo Cavallo conseguiu impor a estabilidade de preços ao fixar a paridade peso-dólar e permitir a validação dos contratos denominados em moeda estrangeira. A lei também determinou que o Banco Central deveria respaldar 100% da base monetária com reservas em moeda estrangeira. Na prática, dizia meu amigo, o economista Roberto Frenkel, a Lei de Conversibilidade “transformou o Banco Central numa ‘caixa de conversão’ e completou a desregulamentação da conta de capital do balanço de pagamentos”.
Assim foi o Plano Cavallo. O começo foi eufórico: a hiperinflação seria derrotada à custa da adoção do currency board, um regime de conversibilidade plena dólar-peso, com taxa fixa de câmbio. O regime cambial iria requerer, é claro, a imobilização da política monetária: as condições de liquidez da economia deveriam estar determinadas pelas flutuações no volume de reservas cambiais. Essa escolha implica a aceitação do risco de ajustamentos recessivos e a deflação de preços quando mudam as condições de liquidez dos mercados financeiros externos ou quando ocorre uma flutuação negativa dos termos de intercâmbio. Na prática, entregaram as funções de administração do crédito, de provedor de liquidez e de “prestamista de última instância” ao Federal Reserve.
Milei vai repetir a tragédia como farsa
Os defensores da dolarização construíram casas na areia quando formularam a hipótese de que o currency board iria infundir mais confiança nos investidores estrangeiros, melhorando as condições de liquidez para o país de moeda fraca. Essa fantasia, entre outras promessas, garantia aos crédulos que os eventuais desequilíbrios em transações correntes poderiam ser, num primeiro momento, compensados pela entrada de capitais, com uma redução dos diferenciais de juros, entre os pagos em pesos e em dólar. Nessa visão, o “desaparecimento” do risco de desvalorização cambial aumentaria o grau de substituição entre ativos domésticos e ativos estrangeiros. Ou seja, a redução drástica do risco cambial determinaria maior integração entre o mercado financeiro argentino e o mercado internacional, melhorando, aos olhos dos investidores estrangeiros, a qualidade dos ativos reprodutivos e dos títulos de dívida emitidos para possuí-los.
Dentro de um prazo razoável, a ação dos novos investimentos e a melhora da eficiência imposta pela concorrência externa levariam à recuperação sólida da balança comercial e à redução do déficit em transações correntes. Esse regime iria requerer, é claro, a imobilização da política monetária. Assim, as condições de liquidez da economia deveriam ser determinadas pelas flutuações no volume de reservas cambiais. Essa escolha implica a aceitação do risco de ajustamentos recessivos e a deflação de preços quando mudam as condições de liquidez dos mercados financeiros externos ou quando ocorre uma flutuação negativa dos termos de intercâmbio.
A fragilidade do sistema industrial e o baixo dinamismo de suas exportações, agravados pela imprudente liberalização comercial e financeira, tornaram os ciclos de crescimento na Argentina relativamente curtos, invariavelmente acompanhados de elevação do déficit em transações correntes. As crises de confiança, cada vez mais frequentes, desataram a saída de capitais e aumento na proporção dos contratos de dívida e dos depósitos bancários denominados em dólares. Esses movimentos comprimem a liquidez doméstica, fazem saltar as taxas de juros e lançam a economia na senda da recessão, da fragilidade financeira e fiscal, do desemprego elevado. Nessa toada, foi inevitável o aumento do endividamento externo público: é a contrapartida da retração do setor privado que não consegue mais rolar as dívidas contraídas na fase de euforia e evita assumir novos passivos em moeda estrangeira.
Entre o Natal de 2001 e a Epifania de 2002, os argentinos protestavam nas ruas contra o corralito aos brados de “queremos dólares”. O currency board do doutor Cavallo entrou em colapso. No fim de 2001, afetado pela desvalorização brasileira de 1999, a aventura da conversibilidade com taxa de câmbio fixa, apimentada com a permissão de depósitos em moeda estrangeira, terminou na tragicomédia do corralito. Os titulares dos depósitos em moeda forânea correram aos bancos, desesperados, à procura de dólares que estavam, sim, escriturados em suas contas, mas escasseavam em espécie nos cofres.
Cavallo e Carlos Menem, o presidente, quando anunciaram a lei de conversibilidade, decretaram a impotência do Estado argentino, sobretudo, mas não só, em matéria econômica.
Milei vai repetir a tragédia como farsa. •
Publicado na edição n° 1287 de CartaCapital, em 29 de novembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Déjà vu’
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