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Aposta suicida

Netanyahu não pondera que a guerra pode espraiar para o Líbano e a Síria, observa pesquisador francês

Aposta suicida
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Visão global. O brutal revide aos ataques do Hamas começa a trazer danos para a imagem de Israel, avalia Régis Morelon – Imagem: Redes sociais e Menahen Kahana/AFP
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Pesquisador do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Egito e especialista em história das ciências árabes, Régis Morelon conhece com profundidade a situação política do Oriente Médio. Morou na Argélia, no Líbano, na Síria e viveu por 27 anos no Cairo. Chocado com o apoio de François Hollande ao bombardeio israelense em Gaza em 2014, escreveu uma carta ao presidente, comparando o território palestino ao Gueto de Varsóvia.

Após os ataques do Hamas em 7 de outubro, ele acompanha com apreensão o desproporcional revide israelense, que, segundo sua avaliação, ameaça a existência do próprio Estado de Israel. Para o especialista, os ventos da opinião pública mundial começam a mudar de direção. Pudera. Segundo a ONG Breaking the Silence, a força aérea de Tel-Aviv despejou mais bombas em Gaza que os EUA no Afeganistão durante um ano inteiro.

Carta Capital: Em 2014, na terceira Intifada, o senhor escreveu uma carta a François Hollande, que havia recebido seu voto, e disse estar “profundamente escandalizado” com o apoio do presidente francês aos bombardeios israelenses. Como qualificar o apoio incondicional de Macron a Netanyahu agora, com mais de 11 mil mortos em Gaza?
Régis Morelon: Macron não entende nada do conflito israelo-palestino. Depois, ele ainda tentou buscar algum crédito junto aos países árabes, mas seu apoio a Netanyahu foi tão absoluto que ninguém mais o leva a sério.

CC: O que mudou de 2014 para cá?
RM: É quase a mesma situação. Os atentados do Hamas viraram pretexto para bombardear Gaza indiscriminadamente. Israel é dominado pela vingança, mas a retaliação desproporcional pode fazer a opinião pública mundial se voltar contra eles. Ao contrário das outras vezes, fala-se muito do direito internacional ignorado por Israel. Antes, ninguém cobrava isso.

CC: Um pouco antes do 7 de outubro, o psicanalista Gérard Miller observou, em artigo publicado no Le Monde, que grande parte de judeus franceses aderiu ao discurso da extrema-direita. O que explica esse fenômeno?
RM: A extrema-direita divulga o mito da “grande substituição”, segundo o qual os muçulmanos estariam esmagando a civilização judaico-cristã francesa. O Islã é apontado como o grande terror. Mas nem todos os judeus pensam dessa forma. Tenho um amigo com dupla nacionalidade que devolveu seu passaporte israelense em 2014. “Netanyahu nos faz perder nossa alma e eu me recuso a aceitar”, disse à época, acrescentando que vários amigos judeus também se sentiam constrangidos.

CC: Em 2019, Macron disse que o antissemitismo era consubstancial ao antissionismo. O que pensa a respeito?
RM: Macron é um incompetente. Tenho amigos judeus totalmente antissionistas, porque são contra a apropriação por Israel das terras palestinas. Eu também sou antissionista, não por ser contra a existência de Israel, mas por me opor à expansão de colonos extremistas sobre a Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Sou antissionista porque sou contra esse projeto da “Grande Israel”.

CC: Alguns judeus tratam qualquer gesto de solidariedade à causa palestina como uma ameaça à existência de Israel. Esse tipo de comportamento é induzido pela propaganda sionista?
RM: Claro! A única solução para o conflito na região seria a existência de dois Estados, mas essa proposta tem sido interditada pelo avanço dos colonos judeus sobre os territórios palestinos. Os diplomatas podem continuar dizendo: “Queremos dois Estados”, mas talvez seja impossível.

“É um conflito assimétrico, um foguete contra um F-16, mas Israel não sabe o que fazer depois”

CC: Militares dos EUA cooperam ativamente com as forças armadas de Israel. O governo norte-americano é cúmplice do massacre em Gaza?
RM: Sim, claro. O governo dos EUA continua a apoiar Israel incondicionalmente, inclusive com o envio de militares, mas acho interessante que, nas universidades norte-americanas, há muitos intelectuais pró-palestinos. É a primeira vez que isso acontece. Os líderes dos demais países não dizem claramente, porém, que Israel transgride as leis internacionais, exatamente por causa do respaldo de Washington. Isso é muito grave. Talvez isso comece a mudar, cada vez mais ouço vozes críticas, mas Israel sempre ignorou as resoluções da ONU sem sofrer sanções.

CC: Rony Brauman, um dos fundadores da ONG Médicos sem Fronteiras, sustenta que o confronto entre Israel e Hamas é uma “guerra assimétrica”, pois não há dois exércitos que se enfrentam, e sim o bombardeio incessante de uma das forças armadas mais poderosas do mundo contra combatentes de recursos limitados.
RM: Ele tem razão, é um conflito assimétrico, um foguete contra um F-16, mas Israel não sabe o que fazer depois, no pós-guerra. Netanyahu também não se questiona sobre a possibilidade de a guerra avançar para o norte, nas fronteiras com o Líbano e a Síria. A existência de Israel está em jogo, é uma aposta suicida.

CC: Dos mais de 11 mil mortos em Gaza, dois terços são crianças, mulheres e idosos. A Cruz Vermelha tem denunciado o bombardeio até de ambulâncias com feridos. Esta catástrofe humanitária está sendo televisionada. Como explicar a indiferença da comunidade internacional?
RM: É preciso distinguir a comunidade internacional no nível do povo e na esfera dos governos. No Ocidente, as populações estão cada vez mais críticas em relação a Israel. Todo o Sul Global coloca-se contra Israel e pede um cessar-fogo imediato. Existem as posições oficiais de cada ­país e existe a percepção popular sobre o conflito. Há uma distância impressionante.

CC: O senhor percebe o uso da religião judaica, de um povo escolhido para ocupar aquela terra, para justificar a opressão do povo palestino?
RM: Vi outro dia na televisão um colono que dizia: “Deus nos deu esta terra”. É um argumento de autoridade, quem pode questionar os desígnios divinos? Como dizia o escritor austríaco Stefen Zweig, de origem judaica, “os homens que pretendem combater por Deus são os mais antissociais da terra, porque creem que ouvem mensagens divinas e suas orelhas permanecem surdas a qualquer palavra de humanidade”. •

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aposta suicida’

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