Justiça
Sem chance de defesa
Imigrante togolesa luta para provar inocência em um processo de enredo kafkiano


Todos os dias a ambulante Falilatou Estelle Sarouna acorda cedo para disputar um espaço nas calçadas do Brás, tradicional centro de comércio popular de São Paulo. Antes mesmo de o sol despontar, ela estende uma lona sobre o chão, onde expõe as peças de roupa à venda. Desde que chegou do Togo há dez anos, em busca de uma vida melhor, esse tem sido o ganha-pão da imigrante. Essa rotina só foi interrompida em 15 de dezembro de 2020, quando a trabalhadora se deparou com a porta de sua casa arrombada, todos os pertences revirados. Assustada, telefonou para um padre da comunidade, que a acompanhou até a delegacia mais próxima, para registrar um boletim de ocorrência. Em vez de ser acolhida, recebeu voz de prisão. Com dificuldade para se comunicar em língua portuguesa, não entendeu o que se passava. Tardou a conseguir um intérprete capaz de explicar o enredo kafkiano.
A togolesa foi acusada de integrar uma quadrilha internacional, especializada em golpes de estelionato sentimental. A prática desenvolve-se pela internet, através de perfis falsos em redes sociais e aplicativos de namoro, e consiste em estabelecer vínculos com as vítimas para, depois, extorqui-las com chantagens emocionais e ameaças de compartilhamento de fotos íntimas. A prisão deu-se no âmbito da Operação Anteros, deflagrada pela Polícia Civil contra 210 pessoas, das quais 93 eram imigrantes oriundos, sobretudo, de países da África. Segundo os investigadores, Falilatou S. era a correntista da quadrilha e operava quatro contas bancárias.
Já a defesa aponta uma série de violações aos direitos da imigrante togolesa, que culminaram em uma condenação sem provas consistentes. A embaixada do Togo não chegou a ser notificada sobre a prisão, o que fere a Lei de Migração. Ela tampouco teve a conduta analisada individualmente. Os acusados foram julgados em bloco, de modo que Falilatou S. foi considerada culpada por estelionato e formação de quadrilha. Ela passou seis meses e um dia presa na Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru. “Foi terrível. Nada fazia sentido, não entendia por que estava presa.”
Segundo o advogado Vitor Bastos, responsável pela defesa da imigrante desde o início do processo, as únicas provas contra Falilatou S. são assinaturas atribuídas a ela na abertura das contas bancárias. Mas as firmas com nome completo em letra cursiva, utilizadas pela quadrilha, são muito diferentes da assinatura real da imigrante, que se aproxima de um rabisco. Alfabetizada no Togo, em padrões distintos dos ocidentais, ela é anágrafa, ou seja, não sabe escrever de acordo com o alfabeto brasileiro. Até mesmo a perícia grafotécnica, para atestar a veracidade das firmas, foi negada à ré.
Outro ponto destacado pela defesa são as escutas telefônicas. Durante a investigação, vários telefones foram grampeados. Em nenhum momento, os criminosos mencionam Falilatou S. nas conversas ou fazem qualquer referência à suposta participação dela na quadrilha. “Ela foi vítima de fraude bancária e acabou condenada injustamente. A Justiça brasileira não ofereceu a ela a possibilidade de se defender, de provar a própria inocência.”
O caso voltou à tona há poucos meses, quando a juíza Renata Esser de Souza, da 2ª Vara Judicial de Martinópolis, cidade onde a ação é movida, condenou Falilatou S. a 11 anos e 3 meses de prisão. “É uma sentença totalmente descabida”, protesta Bastos, que também integra o núcleo de Direitos dos Imigrantes e Refugiados da OAB paulista. O advogado trabalha para reverter a pena nas instâncias superiores. “O próximo passo é o Superior Tribunal de Justiça. Se não resolver, vamos acionar o Supremo. Se ainda assim essa injustiça persistir, estou disposto a apelar para as cortes internacionais, porque tenho absoluta convicção da inocência dela.”
As únicas provas contra Falilatou S. são assinaturas de contas bancárias não submetidas a perícia grafotécnica
Para Bastos, a togolesa é mais uma vítima do racismo institucional entranhado no Judiciário. Foi condenada sem ser ouvida, principalmente por ser mulher negra em situação de vulnerabilidade social. “A Justiça do Brasil trata uma pessoa pobre como se ela não valesse nada, mas não sou criminosa. Sempre fui pobre, sofri muito no Togo, mas nunca roubei nada de ninguém. Eu trabalho e, se não ganho o suficiente, peço às minhas vizinhas uma xícara de arroz, um punhado de lentilha. Minha vida sempre foi assim.”
No fim de outubro, o caso virou pauta de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, convocada pelas deputadas da Bancada Feminista, do PSOL. “Como a Falilatou não foi ouvida nos tribunais brasileiros, promovemos esse evento para dar visibilidade a essa injustiça e torcemos para que ela seja inocentada”, explica Simone Nascimento, uma das coparlamentares. A ideia, agora, é enviar o material da audiência à juíza, e apelar para que haja uma revisão da sentença.
Carla Mustafa, coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da OAB paulista, vê com preocupação a história da togolesa. “Infelizmente, não é um caso isolado. Mas a Falilatou, por ser mulher negra e imigrante, foi claramente vítima de racismo e xenofobia.” Segundo a advogada, ainda cabem recursos, mas não será tão simples reverter a sentença.
Natural de Lomé, capital do Togo, a imigrante de 45 anos já trabalhou como empregada doméstica, cozinheira e operadora de caixa no McDonalds. Desde que começou a vender roupas, ainda em sua terra natal, conquistou independência financeira e juntou dinheiro para migrar ao Brasil. Ao se mudar, deixou o filho para trás, com uma de suas irmãs, e prometeu voltar para buscá-lo. No meio do caminho, tornou-se alvo desse processo no Brasil.
Coletivos e movimentos sociais abraçaram a campanha “Liberdade para Falilatou”. Um dos organizadores, Daniel Perseguim, do Fórum Fronteiras Cruzadas, enfatiza que o caso da imigrante togolesa é emblemático pelas muitas violações que ela sofreu, mas serve para explicitar as condições às quais os imigrantes têm sido submetidos no Brasil. Depois que recebeu um habeas corpus para aguardar o julgamento dos recursos em liberdade, ativistas organizaram uma vaquinha e conseguiram o visto para trazer o filho dela ao Brasil, que neste mês completa 14 anos. “Tudo que desejo é uma vida tranquila com meu filho. Não quero ir embora do Brasil.” •
Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.
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