Antonia Quintão

Presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, pós-Doutora pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo. Também é pesquisadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa e consultora de Diversidade e Inclusão nas Organizações.

Opinião

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Às crianças negras

Muitas continuam sem o direito de conviver com suas mães desde muito cedo e precisam aprender a sobreviver sem carinho, cuidado e proteção

Às crianças negras
Às crianças negras
Créditos: istock
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Quero dedicar esse artigo às crianças negras, alvos vulneráveis e silenciosos do racismo, que tem, ao longo da história, atentado contra a sua infância, inocência e vida.

Apresento inicialmente um pequeno trecho de um texto histórico, revelador de uma mentalidade existente até os dias atuais:

“Em maio de 1872, Luís Gama, representando uma liberta na cidade de São Paulo, dirige um ofício ao chefe de polícia da província de São Paulo, requerendo em nome da crioula liberta Balbina, de São Bento, que o filho desta, de nome Fortunato, fosse devolvido à custódia da mãe. Balbina havia sido escrava do Mosteiro de São Bento na Cidade de São Paulo, quando deu à luz seu filho. Este, porém, nasceu livre, porque a esse tempo a ordem beneditina batizava como livres os filhos das suas escravas. 

Entretanto, como a suplicante não tinha meios de criar e educar seu filho, nem a mencionada ordem os prestasse, entregou a suplicante o seu dito filho ao padrinho para tal fim. E conquanto o padrinho Porfírio, escravo do Exmo. Barão de Iguape, fosse, como ainda o é, sujeito por condição (escravizado), tinha, contudo, mais meios do que ela. Fortunato, com menos de 6 anos na época do requerimento, acabara de fugir de seu padrinho e estava recolhido na casa de um terceiro, que o havia encontrado vagando. Balbina requer o seu filho de volta, pois hoje está liberta e, pelo seu trabalho, tem os precisos meios para educar e tratar seu filho”.

(Trecho do livro:  História da Vida ­Privada – Vol. Império.)

Mais de um século se passou e ainda hoje muitas crianças negras são usurpadas do direito de conviver com suas mães desde muito cedo e precisam aprender a sobreviver sem o seu carinho, cuidado e proteção. O caso do menino Miguel Otávio Santana da Silva, morto aos 5 anos, é um trágico exemplo dos desafios enfrentados pelas crianças negras. Miguel morreu após cair do nono andar de um prédio de luxo no centro do Recife em 2020. Aos cinco anos, as crianças não são capazes de avaliar os perigos, por isso não podem circular sozinhas nos prédios. Ele procurava pela mãe Mirtes, que naquele momento precisou descer com o cachorro dos patrões.

Desde quando serviço doméstico deve ser monopólio das empregadas domésticas? Desde quando serviço doméstico é atividade essencial? No período da pandemia, muitas não tiveram o direito de permanecer em casa. Infelizmente, são muitos os relatos daquelas que tiveram de se expor e expor suas famílias aos perigos do contágio para continuar trabalhando e sobrevivendo.

No enfrentamento das desigualdades, o Geledés – Instituto da Mulher Negra assumiu o debate sobre as infâncias como forma de desconstruir a naturalização da presença das crianças negras em situações de extrema vulnerabilidade. Em 2020, foi realizada na cidade de São Paulo a pesquisa “O Direito à Educação de Crianças e Adolescentes em Tempos de Pandemia”, com recorte de ­raça/cor e gênero, confirmando que a pandemia da Covid-19 aprofundou as desigualdades e impactou mais gravemente na vida das crianças negras, no seu desenvolvimento, na sua integridade, nas condições socioeconômicas, sendo as meninas negras as mais vulneráveis. Segue o link para os interessados em conhecer mais sobre o tema.

Recomendo também o livro Do ­Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar, de Eliane Cavalleiro, cuja leitura considero indispensável para aqueles que se comprometem com uma educação antirracista: mães, pais, educadoras e, principalmente, para as professoras e professores.

E ainda o vídeo de uma mãe relatando o sofrimento de ver sua filha rejeitada pelas crianças do condomínio onde reside. O depoimento é forte, verdadeiro, impactante, pois apresenta a história da infância de muitas mulheres negras.

A desconstrução do racismo e a formação para o respeito às diferenças e a diversidade não se fazem com discurso, mas com iniciativas e ações concretas. Seria muito importante observar se a diversidade está presente no círculo de amizade de nossos filhos, netos, sobrinhos e constatar a presença ou não de crianças negras. Se elas não estão incluídas, precisamos avaliar e refletir sobre os motivos dessa exclusão, pois, como todos sabemos, educamos as crianças com os nossos exemplos, comportamentos e atitudes. •

Publicado na edição n° 1284 de CartaCapital, em 08 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Às crianças negras’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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