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Mulheres exaustas

O Estado tem responsabilidade na desigual divisão do trabalho doméstico e do cuidado não remunerado no Brasil

Imagem: iStockphoto
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Em 4 de outubro, o Ipea publicou o estudo Gênero É o Que Importa: Determinantes do Trabalho Doméstico Não Remunerado no Brasil. A partir da análise de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE em 2019, verificou-se que as mulheres continuam sendo as principais prejudicadas pela desigual distribuição do tempo despendido com trabalho doméstico e com o cuidado não remunerado de crianças, idosos e enfermos.

De acordo com o estudo, a presença de filhos amplia o tempo gasto nesse tipo de trabalho em magnitudes diferentes, sendo o dobro para as mulheres na comparação com a variação verificada entre os homens. No mesmo sentido, a presença de idosos com 80 anos ou mais de idade produz efeitos distintos sobre mulheres e homens, ampliando a carga de trabalho reprodutivo delas, mas não gerando efeito sobre eles. Ainda segundo o Ipea, os encargos de família recaem sobre a mulher mesmo quando ela desempenha o papel de responsável pela provisão da renda familiar. Verificou-se que mulheres ocupadas despendem mais tempo com trabalho doméstico e de cuidado não remunerado do que homens desocupados.

Considerando o impacto das responsabilidades familiares na capacidade de trabalho, a Organização Internacional do Trabalho adotou, em 1981, a Convenção nº 156, sobre a igualdade de oportunidades e de tratamento para trabalhadores com encargos de família. Somente após mais de 40 anos de sua proposição pela OIT o texto foi enviado ao Congresso Nacional, pelo presidente da República, para ratificação. Segundo provérbio atribuído a culturas africanas, “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, o que nos remete à importância da coletivização do cuidado.

Com efeito, nos termos dos artigos 227 e 230 da Constituição da República, é dever concorrente da família, do Estado e da sociedade assegurar direitos fundamentais de crianças, adolescentes, jovens e ­pessoas idosas. Mas quem cuida de quem cuida?

A cientista política Françoise ­Vergés aponta, no livro Um Feminismo ­Decolonial, que várias soluções vêm sendo concebidas, tais como casas coletivas nas quais o trabalho doméstico é dividido de maneira igualitária, creches abertas 24 horas, cozinhas e lavanderias coletivas. Reconhecendo a centralidade da coletivização do cuidado para a garantia de trabalho decente a trabalhadoras com encargos de família, a Convenção nº 156 da OIT determina a promoção de trabalhos comunitários, públicos ou privados, como serviços e meios de assistência à infância e à família.

A seu turno, a Recomendação nº 165 da OIT, também de 1981, que desenvolve as normas da Convenção nº 156, servindo de orientação geral para a implementação de políticas nacionais, estabelece que as autoridades competentes, a partir do necessário diálogo social tripartite, devem assegurar serviços e meios de assistência à infância e à família que atendam às necessidades das trabalhadoras, especialmente de comunidades locais.

Após 42 anos, o País ainda não ratificou a Convenção nº 156 da OIT, a promover a equidade entre os trabalhadores com encargos de família

Nesse contexto, cabe ao Estado organizar, diretamente ou por meio de incentivos, a prestação adequada e apropriada de “serviços e meios de assistência à infância e à família, isentos de despesas ou mediante uma taxa razoável, de acordo com a capacidade de pagamento dos trabalhadores, operados ao longo de linhas flexíveis e atendendo às necessidades das crianças de diferentes idades, de outros dependentes que requeiram cuidado e de trabalhadores com encargos de família”.

No que tange ao cuidado com filhas e filhos, em recente relatório divulgado em parceria com o Unicef, o braço das Nações Unidas para a infância e adolescência, a OIT reconhece a importância da ampliação e do fortalecimento de sistemas de proteção social, em especial por meio de benefícios universais de apoio às famílias, como instrumento fundamental para combater as doenças, a pobreza, a fome, a discriminação, a falta de acesso à educação, o casamento e o trabalho infantis.

O relatório propõe, como uma das medidas decisivas para alcançar a proteção social universal para todas as crianças e adolescentes, a garantia de proteção social para pais, mães e cuidadores, assegurando o acesso ao trabalho decente e a benefícios relacionados a desemprego, doença, maternidade, invalidez e aposentadoria. São medidas decisivas para reduzir a pobreza e promover o bem-estar e a equidade social e econômica de crianças e adolescentes.

Ocorre, no entanto, que trabalhadoras informais, em especial aquelas em condições de vulnerabilidade social, como mulheres pobres e negras, encontram-se marginalizadas do sistema de proteção social trabalhista. Mais de 75% das trabalhadoras domésticas no Brasil são informais. A situação dessa categoria bem ilustra o fato de que, ademais dos encargos de família que cultural e socialmente recaem sobre a figura feminina, o cenário de inserção de mães no mercado de trabalho é permeado por desigualdade social, falta de redes de apoio, abandono paterno, insuficiência de creches públicas, longos deslocamentos entre a casa e o trabalho, apenas para citar alguns desafios.

A propósito, o Ipea concluiu que a presença de filhos adolescentes “de ambos os sexos reduz as jornadas masculinas, mas apenas filhas adolescentes mulheres reduzem a carga reprodutiva feminina”, o que evidencia a perpetuação do ciclo geracional de desigualdade na divisão sexual do trabalho de cuidado não remunerado.

Assim, para além dos direitos trabalhistas específicos à maternidade e à não discriminação em virtude de encargos de família, tanto no acesso como na permanência em postos de trabalho, é urgente e imperativo que o Estado brasileiro ratifique a Convenção nº 156 da OIT e assegure cidadania e dignidade a todas as mulheres que vivem do trabalho, garantindo funções decentes especialmente para as profissionais informais, pobres e negras, por meio de políticas públicas de coletivização do cuidado. •


*Lelio Bentes Corrêa é presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Helena Martins de Carvalho é mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB e assessora no TST.

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mulheres exaustas’

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